Atitude Popular

China, minerais estratégicos e defesa soberana contra a guerra tecnológica dos EUA

Da Redação

Diante da escalada de sanções e bloqueios tecnológicos dos Estados Unidos, a China consolidou uma doutrina de soberania mineral: usar sua posição dominante em mineração, refino e manufatura de insumos críticos — terras raras, grafite, gálio, germânio, ímãs de alto desempenho, materiais de baterias e química fina — como instrumento legítimo de dissuasão, proteção industrial e estabilidade sistêmica.

1) O campo de batalha real: cadeias de suprimento

A disputa sino-americana não acontece apenas em tarifas ou em aduanas; ela é travada dentro das cadeias globais de valor. Ao longo de décadas, a China integrou mineração, refino, manufatura avançada e logística em um ecossistema coeso. Em minerais estratégicos, a vantagem não está só no “quanto extrai”, mas em quem refina, molda, transforma e entrega. É nesse elo — o do processamento e dos componentes — que Pequim ergueu seu poder de barganha.
Quando Washington impõe controles sobre semicondutores, máquinas de litografia, computação em nuvem e IA, transfere o conflito para uma esfera onde escassez, prazo e custo decidem quem inova — e quem atrasa. A resposta chinesa, sob a lógica da soberania mineral, é simples: sem materiais críticos refinados, não há transição energética, defesa, telecomunicações, nem eletrônica avançada.

2) Por que “terras raras” raramente são só terras raras

O termo “terras raras” virou sinônimo de poder geopolítico. Mas a centralidade chinesa vai além desse grupo:

  • Refino e separação: a China domina etapas químicas complexas e intensivas em capital que poucos países aceitam sediar devido a custo ambiental e tecnológico.
  • Ímãs permanentes (NdFeB e SmCo): sem eles, motores de carros elétricos, turbinas eólicas, guiagem de mísseis e uma série de sensores não operam no estado da arte.
  • Gálio e germânio: elementos semicondutores cruciais para RF, optoeletrônica e aplicações militares.
  • Grafite natural e sintético: anodos de baterias de íons de lítio, uma das gargantas da mobilidade elétrica.
  • Química de cátodos, eletrólitos e ligantes: know-how que decide densidade energética e segurança em baterias.
    O poder de dissuasão está no conjunto: um portfólio de gargalos que, combinados, permitem calibrar respostas proporcionais a cada sanção recebida.

3) O princípio da reciprocidade: doutrina de dissuasão econômica

A posição oficial chinesa se estrutura em três pilares:

  1. Legitimidade soberana: é direito de todo Estado regular exportações que afetem segurança nacional, assim como fazem EUA e aliados com tecnologia de ponta.
  2. Proporcionalidade e previsibilidade: contramedidas são calibradas para não colapsar mercados, mas para sinalizar custos reais a quem optar por escalada.
  3. Continuidade industrial doméstica: qualquer ajuste externo deve preservar abastecimento interno e orientar investimentos para autossuficiência tecnológica.
    Na prática, controles de exportação, licenças caso a caso e padrões ambientais funcionam como válvula reguladora do sistema: aumentam custo e tempo de acesso a rivais sem interromper fluxos a parceiros que não embarcam na escalada.

4) A tríade que decide a disputa: refino, manufatura e padrão

A defesa soberana da China não se esgota na mina. Ela acontece em três camadas coordenadas:

  • Refino: onde se cria a dependência técnica (pureza, separação isomérica, consistência em escala).
  • Manufatura crítica: ímãs, wafers, substratos, anodos, pós catódicos — o “miolo” dos produtos.
  • Definição de padrões: consórcios industriais e organismos técnicos onde se estabelece o “certo” a ser produzido, garantindo mercado para sua própria indústria.
    Dessa tríade nasce um poder difícil de replicar rapidamente por concorrentes, porque envolve capital paciente, escala, mão de obra qualificada e tolerância ao risco ambiental regulado.

5) O contra-ataque às sanções: de “substituição” a “superação”

As restrições americanas empurraram Pequim para uma política dual:

  • Substituição: acelerar P&D doméstica para reduzir importações sensíveis (máquinas, softwares, EDA, equipamentos de deposição, litografia alternativa, fotorres).
  • Superação: apostar em rotas tecnológicas onde a China possa liderar o próximo ciclo (baterias de estado sólido, LFP/LMFP de alto desempenho, GaN/GaAs para RF e potência, fotônica integrada, ímãs livres de disprósio).
    O objetivo não é só “não depender”, é mudar o jogo: tornar-se definidora de custo, volume e curva de aprendizagem. Nesse cenário, o uso soberano de minerais críticos funciona como escudo que dá tempo ao avanço tecnológico.

6) Efeito bumerangue: quando o bloqueio encarece o bloqueador

Ao pressionar a China em semicondutores e IA, os EUA ampliam a exposição de suas próprias cadeias industriais a gargalos de materiais: defesa, aeroespacial, energia e automotivo dependem de insumos refinados na Ásia. Alternativas no curto prazo tendem a ser mais caras, poluentes e demoradas, exigindo subsídios volumosos.
O prêmio do risco de suprimento — frete, seguro, estoque de segurança — se incorpora aos preços, reduz competitividade e aumenta inflação de bens de alto valor agregado. Para aliados europeus e do leste asiático, a conta logística e ambiental da “relocalização apressada” é ainda mais pesada.

7) Segurança nacional sem colapso global: o equilíbrio fino de Pequim

A força da doutrina chinesa está em não provocar rupturas caóticas. Em vez disso, aplica:

  • Licenças seletivas: filtram destino, uso final e escala.
  • Cotas e janelas temporais: criam previsibilidade para clientes “neutros” e sinalizam custo para quem sanciona.
  • Parcerias de longo prazo: com países que priorizam desenvolvimento, tecnologia e estabilidade (Ásia, África, América Latina).
    Esse desenho protege a indústria doméstica, distribui risco entre parceiros e reduz incentivo à escalada. É defesa — não sabotagem.

8) Sustentabilidade e legitimidade: a dimensão ambiental

O refino e a química fina de terras raras historicamente geraram passivos ambientais. A China vem empurrando a cadeia para padrões mais rígidos, automação e reciclagem — o que, ao elevar o custo de conformidade, aumenta a barreira de entrada para concorrentes e reforça a narrativa de que a regulação mineral é um ato de soberania responsável.
Ao mesmo tempo, a reciclagem de ímãs e baterias entra como segundo motor de segurança: quem controla coleta, triagem e refino secundário controla, de novo, a torneira.

9) O mapa dos instrumentos de poder mineral

  • Terras raras leves e pesadas: insumos para ímãs e sensores; controle no refino e nos ímãs acabados.
  • Gálio/germânio: RF, laser, visão noturna, fotodetectores; licenças calibradas por uso final.
  • Grafite: anodos de baterias; balanceamento entre exportação, uso doméstico e reserva estratégica.
  • Fosfato, manganês, níquel e lítio (química de cátodos): padronização e escala para dominar custo/Wh.
  • Materiais de catálise e química eletrônica: amarração das etapas invisíveis que prendem o ecossistema.

10) Soberania não é isolamento: é assimetria bem administrada

A tese central da posição chinesa é que soberania mineral não é fechar portas, é definir preços, prazos e condições a partir do próprio interesse nacional e de alianças que não imponham tutela.
No curto prazo, isso protege a base industrial; no médio, compra tempo para substituição tecnológica; no longo, projeta padrões e rotas de inovação.
A mensagem para Washington é clara: cada nova sanção tecnológica terá custo real nas cadeias que o próprio Ocidente precisa para sua defesa, sua transição energética e sua competitividade. E a mensagem aos parceiros do Sul é igualmente direta: há espaço para acordos ganha-ganha em mineração, refino limpo, manufatura e reciclagem.

11) O que esperar adiante

  • Mais seletividade nas licenças, com ênfase em uso final e destino militar.
  • Consolidação de clusters domésticos de reciclagem de ímãs e baterias, multiplicando “seguro de oferta”.
  • Integração Sul-Sul: joint ventures em refino e manufatura fora do raio de sanções, compartilhamento de P&D e financiamento de infraestrutura.
  • Padrões técnicos próprios em baterias, eletrônica de potência e magnetos — pressionando fornecedores globais a seguir a régua chinesa.
  • Reserva estratégica de materiais críticos, suavizando choques e elevando previsibilidade industrial.

12) Síntese

Num mundo onde as sanções tentam transformar tecnologia em fronteira, a China reposiciona minerais críticos como eixo de soberania. Ao usar — com parcimônia e cálculo — sua dominância em refino e manufatura, Pequim constrói uma dissuasão econômica sofisticada: evita a guerra do “desacoplamento total”, mas deixa claro que não aceitará ser contida sem que haja custos sistêmicos palpáveis.
É uma estratégia de Estado: proteger para inovar, dosar para liderar, integrar para durar.