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3I/ATLAS: quando a ciência vira espetáculo algorítmico

O cometa interestelar mais intrigante do século revelou tanto sobre a origem do cosmos quanto sobre a nossa era de desinformação: a transformação da astronomia em conteúdo viral e o ataque ao próprio método científico.

Por Reynaldo Aragon 

O terceiro objeto interestelar já detectado pela humanidade, o enigmático 3I/ATLAS, atravessa o Sistema Solar trazendo mais do que poeira e gelo: ele expõe a crise contemporânea da razão. Em torno de um cometa real, orbitam teorias improváveis, vídeos virais e thumbnails apocalípticos que transformam a astronomia em espetáculo algorítmico.

O espanto e o ruído

Durante séculos, o ser humano ergueu os olhos para o céu em busca de respostas. O cosmos era o espelho da dúvida e o abismo do mistério. Cada ponto luminoso representava, ao mesmo tempo, o limite e a promessa do conhecimento. Quando Galileu apontou sua luneta para os céus, não buscava likes, buscava sentido. O espanto era o motor da razão. A ciência nascia do silêncio — e o silêncio era sua morada natural.

Em julho de 2025, quando o telescópio ATLAS, no Havaí, registrou um brilho incomum nas bordas do Sistema Solar, o mundo ainda não sabia que assistia ao nascimento de um novo visitante interestelar. O 3I/ATLAS, designado assim pela União Astronômica Internacional, é um viajante de outro sol, um fragmento de matéria errante que atravessa a imensidão há bilhões de anos. Nada mais natural, nada mais extraordinário. O fato de que algo vindo de tão longe pudesse ser detectado, estudado e compreendido pela mente humana é, em si, uma celebração da inteligência coletiva e do método científico.

Mas o espanto durou pouco. Antes que as primeiras análises fossem publicadas, antes mesmo que os dados fossem confirmados, o 3I/ATLAS já havia se tornado uma trending topic global. Perfis de redes sociais anunciaram: “Uma nave alienígena está se aproximando da Terra!” Canais de vídeo estampavam thumbnails com chamas e olhos reptilianos. A notícia científica transformou-se em performance. O silêncio do cosmos foi substituído pela gritaria digital.

E assim, um evento que poderia ter renovado a fé humana na curiosidade virou combustível para o mercado da distração. O mistério, que na ciência é o início do conhecimento, foi sequestrado pelo algoritmo e convertido em espetáculo. O cometa, que viajava há milhões de anos entre as estrelas, tornou-se mais um personagem na dramaturgia do engajamento.

O espanto, que é a gênese da filosofia e da ciência, foi reduzido a ruído.

O cosmos, que deveria nos fazer sentir parte de algo maior, virou palco de uma corrida por monetização.

E a dúvida, esse gesto nobre da razão, foi convertida em histeria de cliques.

O 3I/ATLAS atravessa o Sistema Solar, mas o que ele realmente revela é o estado da Terra: uma civilização hiperconectada, onde o sublime é absorvido pelo algoritmo e o conhecimento é subjugado pela lógica do engajamento. O brilho do cometa reflete, ao mesmo tempo, a grandeza da mente humana e a decadência de sua própria cultura informacional.

O que é o 3I/ATLAS — a beleza dos fatos

Antes de virar trending topic, o 3I/ATLAS foi apenas um brilho discreto registrado por um telescópio automatizado no Havaí. O nome vem do programa Asteroid Terrestrial-impact Last Alert System (ATLAS) — uma rede de observatórios concebida não para caçar alienígenas, mas para detectar objetos potencialmente perigosos à Terra.

Em 1º de julho de 2025, seus sensores captaram algo com trajetória estranha, demasiadamente rápida para um corpo ligado gravitacionalmente ao Sol. Dias depois, a União Astronômica Internacional confirmou: tratava-se do terceiro visitante interestelar já observado pela humanidade, depois de 1I/ʻOumuamua (2017) e 2I/Borisov (2019). Assim nascia C/2025 N1 (ATLAS) — ou simplesmente 3I/ATLAS.

A primeira evidência que o diferenciou de tudo o que conhecíamos veio da sua órbita: uma curva hiperbólica, com velocidade de escape em torno de 57 km/s, indicando origem além do Sistema Solar. Mas o espanto cresceu quando o JWST e a sonda ExoMars TGO detectaram uma coma dominada por dióxido de carbono (CO₂) — algo raríssimo entre cometas. A proporção CO₂/H₂O ≈ 8 : 1 é uma das mais altas já registradas. Isso sugere que o 3I/ATLAS se formou em uma zona fria e antiga de outro sistema estelar, possivelmente há 10 bilhões de anos, quando a Via Láctea ainda se organizava.

O Swift Observatory, da NASA, captou em agosto de 2025 a emissão intensa de radicais OH, produto da quebra da água, a quase 3 unidades astronômicas do Sol — muito mais longe do que um cometa comum começaria a sublimar. Isso significa que há gelo puro e volátil exposto em sua superfície: o cometa “respira” cedo, antes do calor solar o alcançar.

Além disso, medições polarimétricas realizadas por telescópios europeus mostraram um ramo de polarização negativa extremo, um comportamento óptico sem paralelo em cometas conhecidos. Esse padrão indica uma superfície coberta por grãos microscópicos com propriedades ópticas e químicas diferentes das de qualquer corpo do Sistema Solar.

Em outras palavras, o 3I/ATLAS é um arquivo interestelar viajando no tempo e no espaço. Ele carrega, em seus minúsculos cristais e gases, a assinatura química de um outro sol, de um outro disco de poeira onde talvez mundos se formaram e desapareceram. É a primeira vez que a humanidade tem a chance de analisar, com instrumentação moderna, matéria “alienígena” em sentido literal: não por ficção, mas por origem estelar.

Nenhum dado sugere risco à Terra. Seu periélio — o ponto mais próximo do Sol — ocorrerá em 30 de outubro de 2025, a 1,4 unidade astronômica do Sol (aproximadamente 210 milhões de km), com distância mínima da Terra de 1,8 UA. Ele passará despercebido a olho nu, mas deixará um rastro duradouro na ciência.

Com isso, temos um paradoxo fascinante: o 3I/ATLAS é ao mesmo tempo completamente natural e absolutamente extraordinário. Natural, porque segue leis físicas conhecidas; extraordinário, porque vem de um outro lugar do cosmos, e nos permite confrontar hipóteses sobre formação planetária, linhas de gelo e história galáctica.

E é precisamente aí que começa o conflito contemporâneo: quanto mais bela e precisa é a ciência, mais ela parece invisível diante do espetáculo.

O nascimento do espetáculo

A descoberta do 3I/ATLAS poderia ter sido um capítulo luminoso da história humana: uma síntese rara entre cooperação global, tecnologia de ponta e a velha curiosidade ancestral diante do desconhecido. Mas em poucos dias, aquilo que nascia no silêncio dos observatórios foi engolido pela lógica ruidosa da era algorítmica.

O primeiro a detectá-lo foi um sistema automatizado — não um olhar humano. E o primeiro a interpretá-lo publicamente não foi um cientista, mas um influencer. Em menos de 48 horas após a nota do Minor Planet Center, o nome “3I/ATLAS” já havia sido transformado em “objeto misterioso vindo de fora da galáxia”. O termo “interestelar” virou “intergaláctico”, e a prudência metodológica virou narrativa conspiratória.

O algoritmo fez o resto.

No YouTube, vídeos com miniaturas flamejantes anunciavam “NASA oculta dados sobre possível nave alienígena”. No X, prints fora de contexto de preprints científicos circulavam como provas de um “encobrimento global”. No TikTok, criadores com milhões de seguidores apontavam para o céu dizendo ter filmado “o cometa da destruição”.

A astronomia, que é uma das ciências mais belas e lentas — construída em curvas de luz, espectros e incertezas —, foi convertida em um teatro de urgência, onde o que importa não é o fato, mas o impacto.

O mais inquietante é que a transformação não foi acidental. Cada plataforma tem seu próprio motor de recompensa, e o sensacionalismo é a sua moeda.

O algoritmo premia quem grita mais alto. E quanto mais distante da verdade, maior o engajamento. O absurdo viraliza, o rigor cansa.

O resultado é que a ciência perde o monopólio da explicação — não porque tenha errado, mas porque fala baixo demais num mundo que só escuta quem promete o impossível.

Em meio a essa tempestade informacional, os próprios cientistas se viram forçados a competir na arena do espetáculo. Astrofísicos abriram contas no TikTok, jornalistas científicos passaram a ajustar títulos para “performar melhor”, e a fronteira entre divulgação e autopromoção dissolveu-se.

A autoridade científica, que outrora repousava na verificação e na revisão por pares, passou a depender da métrica de engajamento. A epistemologia foi substituída pela economia da atenção.

É aqui que nasce o espetáculo: quando a curiosidade deixa de ser caminho para o conhecimento e se torna instrumento de branding.

O 3I/ATLAS, em vez de despertar perguntas sobre a origem do universo, desperta a ânsia por visualizações.

O telescópio, símbolo do olhar racional, cede espaço ao ring light.

E nesse teatro de pixels e monetização, a dúvida — que deveria ser o primeiro passo da ciência — é reconfigurada em produto: quanto mais caótica, mais lucrativa.

O resultado é a domesticação do espanto e a prostituição do mistério: uma conversão da curiosidade em moeda.

Assim, antes mesmo que o 3I/ATLAS completasse sua trajetória ao redor do Sol, ele já havia se transformado em metáfora perfeita do nosso tempo:

um corpo de gelo e poeira atravessando o espaço interestelar, coberto por uma cauda de desinformação, cinzas e ruído.

A economia política do engajamento

A transformação do 3I/ATLAS em um show algorítmico não foi um erro de percurso; foi um produto necessário das relações de produção da informação no capitalismo digital.

A astronomia não foi cooptada pela irracionalidade — foi absorvida pela lógica de mercado.

Aquilo que antes era um campo de produção de conhecimento tornou-se uma engrenagem da indústria da atenção, uma das mais lucrativas do planeta.

Na superfície, parece apenas uma disputa entre cientistas e influenciadores, entre dados e narrativas. Mas no fundo, o que está em jogo é a forma como o capital captura a curiosidade.

O método científico — coletivo, lento, autorreflexivo — não se adapta à velocidade do feed.

O algoritmo não tem paciência para revisões por pares.

Ele exige constância, emoção e volume.

A ciência é um modo de produção de saber; as plataformas são modos de produção de valor.

Quando uma entra no domínio da outra, o que se produz já não é conhecimento, mas conteúdo.

O resultado é uma contradição central da era digital: as forças produtivas da ciência (telescópios automatizados, redes internacionais de dados, computação quântica, IA científica) alcançaram um grau de sofisticação jamais visto, mas estão subordinadas a relações de produção regressivas, controladas por corporações cujo interesse é extrair atenção, não promover entendimento.

É o que MARX chamaria de fetichismo da informação: os conteúdos aparecem como entidades autônomas, desligadas das condições de sua produção, e passam a circular como mercadorias dotadas de valor próprio — mensurável em views, curtidas e tempo de tela.

O “valor de uso” da ciência — explicar o universo — é eclipsado pelo “valor de troca” da visibilidade.

A isso se soma um fenômeno ainda mais profundo: a alienação cognitiva.

O trabalhador da informação — seja o divulgador científico, o jornalista ou o próprio pesquisador — se torna alienado de seu próprio produto. Ele já não comunica o que descobre; comunica o que engaja.

Os dados são moldados pela estética do engajamento, não pela lógica da demonstração.

O telescópio moderno produz milhões de gigabytes de dados brutos; o algoritmo seleciona quinze segundos “emocionantes”.

O caso do 3I/ATLAS ilustra isso com perfeição dialética.

O cometa, fruto da cooperação científica planetária, foi estudado por instrumentos de precisão que representam o ápice das forças produtivas humanas.

Mas a sua narrativa — o modo como a sociedade o percebe — foi mediada por plataformas cuja racionalidade é oposta à da ciência: imediatista, emocional e hierárquica.

O que o método busca compreender em séculos, o algoritmo precisa resolver em quinze segundos.

Essa assimetria gera um paradoxo histórico: quanto mais a humanidade conhece o cosmos, menos compreende o próprio ato de conhecer.

A curiosidade é monetizada; o espanto é embalado; o conhecimento é vendido de volta em forma de ruído.

O capital não destrói o saber — ele o absorve, refina e revende.

Assim, o 3I/ATLAS não é apenas um cometa interestelar: é um espelho da forma-mercadoria aplicada à consciência científica.

Eis a dialética cruel do nosso tempo:

A infraestrutura que permite olhar para o infinito é a mesma que aprisiona o olhar no espelho do engajamento.

O telescópio e o feed são, hoje, faces opostas da mesma forma social: uma busca pelo absoluto e uma rendição ao instante.

O eclipse da dúvida: do método à histeria

A dúvida é o coração da ciência.

Não o ceticismo corrosivo que paralisa, mas a dúvida criadora — aquela que questiona para compreender, que desconfia para se aproximar da verdade.

Sem ela, o pensamento degenera em dogma; com ela, o mundo se expande.

Mas no tempo do 3I/ATLAS, a dúvida deixou de ser motor do conhecimento e se tornou ferramenta de desorientação.

O que antes era método virou espetáculo.

O “talvez” do cientista, expressão de prudência, é interpretado nas redes como fraqueza, como sinal de que “algo está sendo escondido”.

Assim, o mesmo gesto que sustentou séculos de avanço racional — a hesitação — passou a ser explorado como brecha de manipulação.

O negacionismo contemporâneo não opera contra a ciência; ele a imita.

Adota sua linguagem, sua estética e até seus instrumentos, mas com um propósito invertido: não revelar o real, e sim produzir dúvida infinita.

É a simulação do método — um pastiche epistêmico.

Influenciadores digitais se apresentam como “pesquisadores independentes”, vídeos editados são chamados de “investigações”, e cada desinformação é revestida de jargão técnico para parecer verossímil.

O resultado é uma paródia da ciência, onde a autoridade não deriva do argumento, mas do carisma e da retórica.

No caso do 3I/ATLAS, isso se manifestou de forma exemplar.

Cada preprint publicado foi imediatamente recortado e descontextualizado para sustentar narrativas contraditórias: “a NASA esconde dados”; “os astrônomos estão divididos”; “há sinais de propulsão”.

Os mesmos instrumentos que a ciência usa para divulgar e debater — transparência, revisão aberta, comunicação pública — foram convertidos em armas contra ela.

O método científico foi hackeado.

A dúvida metódica, que deveria produzir clareza, passou a gerar entropia cognitiva.

E o algoritmo, ávido por conflito, aprendeu a amplificá-la.

O que se chama hoje de “debate público” é muitas vezes apenas o ruído de milhões de certezas incompatíveis colidindo sem síntese.

A dialética cedeu lugar ao caos informacional.

Nesse ambiente, o método científico perde seu horizonte moral.

A ciência não é mais reconhecida como uma forma de conhecimento, mas como uma narrativa entre outras — vulnerável, opinável, descartável.

O relativismo epistêmico, disfarçado de liberdade de expressão, instala a equivalência absurda entre dado e achismo, entre observação e crença.

E o mais trágico: isso ocorre não porque o público despreze a ciência, mas porque foi ensinado a confundir método com espetáculo.

A histeria que se formou em torno do 3I/ATLAS não foi fruto de ignorância, mas de um modelo de negócios baseado na dúvida permanente.

A desinformação não é um erro: é uma função do sistema.

O algoritmo precisa de instabilidade cognitiva para gerar engajamento — e o engajamento é a moeda que move a economia digital.

A dúvida, que deveria libertar, torna-se mercadoria; o método, que deveria esclarecer, vira enredo conspiratório.

O eclipse da dúvida é, portanto, o eclipse da própria razão.

E o que se apaga não é apenas o brilho da ciência, mas a confiança coletiva na possibilidade de conhecer.

Quando o método é ridicularizado, o obscurantismo deixa de ser resistência e passa a ser entretenimento.

O 3I/ATLAS, ao atravessar o Sistema Solar, nos mostrou duas faces da humanidade: a que constrói telescópios capazes de detectar um fragmento de outro sol — e a que, diante disso, prefere acreditar em thumbnails coloridas e vozes excitadas dizendo “eles estão vindo”.

Esse é o verdadeiro abismo contemporâneo: o que separa o dado da crença, o saber da histeria, o método da monetização.

3I/ATLAS como espelho da civilização digital

Há algo de profundamente simbólico na trajetória do 3I/ATLAS.

Ele não apenas corta o Sistema Solar — corta também o tecido do tempo humano, expondo a nossa contradição mais íntima: nunca estivemos tão próximos de compreender o cosmos, e nunca estivemos tão distantes de compreender a nós mesmos.

O cometa vem de outro sol, de outra era, talvez de uma região perdida do disco espesso da Via Láctea, onde a matéria se formou há dez bilhões de anos. É um fragmento de um mundo extinto, uma lembrança sólida de algo que já não existe.

E, no entanto, ao atravessar o nosso céu, o 3I/ATLAS não ilumina o passado — ilumina o presente.

Ele revela que a civilização que o observa é uma civilização saturada de informação e faminta de sentido.

Enquanto os telescópios captavam dados precisos — composição química, taxas de sublimação, polarimetria —, a rede produzia seu próprio tipo de luz: a luz do ruído.

Milhões de telas brilharam simultaneamente com interpretações delirantes, miniaturas sensacionalistas e teorias improvisadas.

O cosmos, que por séculos foi símbolo de transcendência, virou pano de fundo para lives monetizadas.

O mesmo acontecimento que testemunha o triunfo técnico da espécie humana — sua capacidade de olhar para além do Sol — também denuncia a sua regressão simbólica.

É como se a humanidade tivesse desenvolvido olhos de deuses e ouvidos de crianças.

Temos instrumentos que enxergam os confins da galáxia, mas nossa escuta é mediada por algoritmos que só reconhecem gritos.

O 3I/ATLAS é, portanto, mais que um cometa: é um diagnóstico civilizacional.

Ele nos mostra que o problema não é a ignorância, mas o excesso de ruído; não é a ausência de dados, mas a incapacidade de metabolizá-los em conhecimento.

Sob a luz fria do cometa, o capitalismo da atenção se revela em sua forma mais pura: uma economia onde o caos é produtivo e a confusão, rentável.

A astronomia, que durante séculos alimentou a imaginação e o pensamento filosófico, hoje serve de matéria-prima para o entretenimento automático das redes.

O mesmo impulso que levou Galileu ao telescópio agora conduz criadores de conteúdo ao clickbait cósmico.

Mas há uma ironia dialética nisso.

O 3I/ATLAS, ao ser distorcido e explorado, também escancara o próprio mecanismo de sua distorção.

Ele funciona como uma lente invertida: ao olharmos para ele, vemos o retrato ampliado de nossa crise epistemológica e moral.

Cada vídeo sensacionalista, cada teoria conspiratória, cada thumbnail exagerada é um fragmento de poeira na cauda luminosa do cometa digital — um vestígio da nossa ansiedade por significado.

O 3I/ATLAS não nos ameaça com destruição física, mas com um tipo de aniquilação simbólica: o risco de perdermos a capacidade de diferenciar fato de ficção, dado de delírio, dúvida de desinformação.

E, paradoxalmente, é justamente essa ameaça que o torna tão importante.

Porque, ao nos ver refletidos nele, podemos perceber o que realmente está em perigo — não a Terra, mas o próprio ato de pensar.

O cometa segue sua rota hiperbólica e, em breve, desaparecerá para sempre.

Mas o eco da sua passagem permanecerá como um espelho suspenso entre as estrelas.

Quem olhar para ele verá, não um visitante de outro sistema, mas o retrato de uma espécie que perdeu o silêncio — e, com ele, a profundidade.

Epílogo – A necessidade de um novo Iluminismo

O 3I/ATLAS já se afasta, silencioso, rumo ao espaço interestelar. Em poucas semanas, deixará de ser visível até mesmo aos maiores telescópios da Terra.

Mas o que ele revelou — e o que revelou sobre nós — continuará orbitando por muito tempo na consciência humana.

Talvez o maior legado desse cometa não seja o que aprendemos sobre a origem do universo, mas o que ele nos mostrou sobre o colapso contemporâneo da razão.

Vivemos um tempo em que a ciência já não é apenas contestada — é performada.

Em que a dúvida, em vez de abrir caminhos, é explorada como espetáculo.

Em que a atenção, o mais íntimo dos recursos cognitivos, é extraída e vendida como mercadoria.

O 3I/ATLAS tornou-se o palco de um drama maior: o embate entre a inteligência coletiva que construiu telescópios capazes de ver o invisível e a estupidez sistêmica que transforma essa conquista em ruído.

E, no entanto, é precisamente desse contraste que pode nascer uma nova consciência.

Porque o mesmo processo que transforma a ciência em conteúdo também evidencia a urgência de reconstruir o sentido público do conhecimento.

Se o Iluminismo clássico libertou o homem da superstição, talvez seja hora de um novo Iluminismo — um que o liberte da manipulação algorítmica e da servidão informacional.

Um Iluminismo da lentidão, da paciência, da escuta.

Um projeto ético em que a transparência e a solidariedade cognitiva sejam mais valiosas que o engajamento.

Defender a razão hoje não é apenas um gesto intelectual — é um ato político de resistência.

A ciência não é infalível, mas é o único espaço onde o erro é corrigido coletivamente e a dúvida é tratada com dignidade.

Reabilitar o método científico como bem comum significa defender a própria ideia de humanidade: a capacidade de construir sentido, de compreender o real, de olhar o céu e ver mais do que reflexos.

Precisamos, urgentemente, de uma ética da curiosidade.

De uma cultura que devolva ao espanto o lugar que ele merece — não como mercadoria, mas como motor da inteligência.

De uma nova pedagogia para o século XXI, em que o conhecimento não seja vendido em fragmentos, mas compartilhado como horizonte.

Talvez o 3I/ATLAS tenha passado por aqui apenas para nos lembrar disso:

que o universo ainda é imenso, que o desconhecido ainda existe, e que a curiosidade — essa centelha que nos separa da barbárie — não pode ser deixada nas mãos dos algoritmos.

Enquanto ele se afasta, levando consigo o pó de um outro mundo, o que fica é a pergunta essencial:

somos capazes de reaprender a olhar o céu sem buscar curtidas?

Se formos, talvez ainda haja esperança de que o próximo cometa não encontre uma civilização distraída, mas uma humanidade desperta — reconciliada com o silêncio, com a dúvida e com a beleza da verdade.

Ensaio publicado originalmente em <código aberto> 

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