Atitude Popular

A Ferrovia que Incomoda Washington

Por Reynaldo Aragon 

A nova rota bioceânica que ligará o Brasil ao Pacífico com apoio da China promete mudar o mapa do comércio global — e ajudar a explicar por que os EUA voltaram suas baterias contra Brasília.

Mais do que trilhos, a ferrovia transoceânica planejada entre Brasil e Peru, com financiamento e engenharia chinesa, representa uma mudança de eixo na geopolítica continental. Reduzindo a dependência do Canal do Panamá e ampliando a influência de Pequim na América do Sul, o projeto fere interesses históricos dos Estados Unidos. Entenda por que essa ferrovia pode ser uma das engrenagens silenciosas da atual tensão entre Washington e Brasília.

No início de julho de 2025, enquanto o noticiário internacional concentrava sua atenção nas eleições americanas e nas crises climáticas em curso, um movimento silencioso atravessava a América do Sul com potencial de alterar os fluxos do comércio global e, mais ainda, as alianças estratégicas do continente. O Brasil e a China assinaram um memorando de entendimento para a realização de estudos técnicos e financeiros que viabilizem um antigo sonho geopolítico: uma ferrovia transoceânica que conecte o Atlântico ao Pacífico.

Mais que um projeto de infraestrutura, a ferrovia é uma peça de xadrez num jogo de poder que opõe, cada vez mais abertamente, as grandes potências do século XXI. O que está em jogo não é apenas o transporte de soja, carne ou minério — mas sim a própria arquitetura logística da globalização, historicamente controlada por rotas sob influência dos Estados Unidos.

A ferrovia partirá de Ilhéus, na Bahia, e atravessará o interior do Brasil, passando por Goiás, Mato Grosso e Rondônia, até alcançar o Acre e, de lá, cruzar os Andes até chegar ao Porto de Chancay, no Peru, hoje operado pela estatal chinesa COSCO. Ao todo, serão cerca de 4.500 km de trilhos, muitos deles aproveitando traçados já planejados ou em construção, como a FIOL (Ferrovia de Integração Oeste-Leste) e a FICO (Ferrovia de Integração Centro-Oeste).

O fim da rota obrigatória

Hoje, os produtos brasileiros que saem do Centro-Oeste com destino à China, ao Japão ou à Coreia do Sul seguem por rodovias até o litoral atlântico, embarcam em portos congestionados, cruzam o Canal do Panamá e seguem seu caminho em alto-mar. A ferrovia mudaria esse ciclo: permitiria um escoamento terrestre até o litoral pacífico, com redução de até 12 dias no tempo de viagem, corte de custos logísticos e menor dependência do canal panamenho — controlado militar e economicamente, desde sua origem, pela esfera de influência dos EUA.

Para Washington, essa mudança é tudo, menos trivial. Significa a perda de uma de suas posições geoeconômicas mais sensíveis no continente. Significa também que a China deixa de ser apenas uma potência distante que compra soja e carne e passa a ser uma operadora de infraestrutura estratégica em solo latino-americano.

E se hoje o Canal do Panamá é um gargalo logístico controlado por interesses alinhados aos EUA — com tarifas altas e risco de colapso climático devido à crise hídrica no istmo —, a ferrovia oferece uma alternativa segura, rápida e sob outra lógica política: a da Rota da Seda chinesa.

O fator Chancay.

A âncora do projeto no Pacífico não é apenas geográfica, mas estratégica. O Porto de Chancay, no Peru, é uma joia geopolítica construída com capital e tecnologia chinesa. Desde 2024, é um dos principais hubs logísticos da costa pacífica sul-americana. Sua operação pela COSCO Shipping Holdings transforma a China em co-proprietária, operadora e planejadora da cadeia logística de exportação da América Latina.

É por esse porto que deverá escoar o coração do agronegócio brasileiro para a Ásia. E é aí que o incômodo americano se torna explícito.

De commodities a hegemonia.

A ferrovia fortalece a China como parceira estrutural do Brasil e enfraquece os EUA como mediador natural das trocas sul-americanas. Não é apenas uma questão de volume de grãos, mas de moeda, contratos e influência. Com a ferrovia, Pequim se posiciona para negociar diretamente com Brasília em yuan, reduzindo o uso do dólar. E mais: amplia sua capacidade de moldar os fluxos comerciais sem passar pelas vias marítimas dominadas pela OTAN.

Além disso, a ferrovia pode gerar um “efeito dominó”: pressionar outros países da região a aderirem à lógica logística chinesa, participando da Belt and Road Initiative (BRI) e reduzindo sua dependência financeira do FMI e do sistema bancário ocidental.

Reação silenciosa.

Embora não tenha feito críticas públicas ao projeto, os sinais vindos de Washington são claros. Nas últimas semanas, aumentou a pressão diplomática e informacional sobre o governo brasileiro. Reportagens em veículos alinhados ao Departamento de Estado começaram a destacar “riscos ambientais” e “falta de transparência” no projeto. Além disso, setores ligados à defesa e à segurança dos EUA têm alertado, em off, para a “ameaça à soberania regional” representada pela crescente influência chinesa.

Internamente, essa tensão se soma à crescente ingerência norte-americana em temas como regulação da internet, inteligência artificial e defesa cibernética — onde o Brasil começa a ensaiar uma postura mais autônoma.

O retorno da Doutrina Monroe?

Historicamente, os Estados Unidos adotaram a Doutrina Monroe como forma de garantir que nenhuma outra potência extrarregional influenciasse os assuntos das Américas. A ferrovia Brasil–Peru, com capital chinês e impacto global, rompe com esse paradigma. Ela marca um novo momento na história sul-americana: um em que os países da região buscam articular suas infraestruturas segundo os seus próprios interesses — mesmo que isso signifique desagradar Washington.

Nesse contexto, a crescente tensão entre os EUA e o Brasil não pode ser entendida apenas pelos episódios da superfície. Ela deve ser lida também pelos trilhos em construção no subterrâneo da geopolítica.

Mais do que nunca, a estrada de ferro é uma estrada de poder.