Alberto Mendes relembra como o projeto de João Goulart articulou reformas internas, política externa independente e diálogo com o movimento dos não alinhados
O período que vai da posse conturbada de 1961 ao golpe de 1964 condensou uma ambição estratégica para o Brasil, afirmar soberania econômica, social e diplomática em meio à Guerra Fria. Em entrevista ao Café com Democracia, da Rádio e TV Atitude Popular, o historiador Alberto Mendes, doutor em História Política, educador popular e fundador de uma biblioteca comunitária em Miguel Couto, Nova Iguaçu, sintetizou a aposta daquele ciclo, “A ideia era de construir uma nação soberana, uma nação que não estivesse condicionada às políticas das grandes potências”.
Mendes atribui a Jango a continuidade de uma linhagem política iniciada no segundo governo Vargas e reforçada na virada dos anos 1950 para 1960. Como ministro do Trabalho de Getúlio, João Goulart consolidou agenda trabalhista e se projetou para a vice-presidência em 1955, então eleita em votação separada da chapa presidencial. A partir dali, diz o entrevistado, formou-se um consenso progressista que cruzou governos e amadureceu em duas frentes, reformas de base no plano interno e redefinição da inserção internacional do país.
No eixo externo, a inflexão foi nomeada de política externa independente. O Brasil buscou distância de alinhamentos automáticos, preservando margem de manobra frente a Washington e Moscou. “Seria um passo à soberania”, resumiu Mendes, ao recordar que Jânio Quadros reatou relações com a União Soviética e que o Itamaraty passou a dialogar com o movimento dos não alinhados, cuja conferência de Bandung e a reunião em Belgrado inspiraram caminhos de cooperação entre países da Ásia, da África e da Oceania. O historiador lembrou que o Brasil esteve como observador e destacou o relatório de Adolfo Justo Bezerra de Menezes sobre Bandung como leitura fundamental.
A construção dessa autonomia, prossegue Mendes, teve nomes decisivos em chancelarias sucessivas. Citou Afonso Arinos de Melo Franco no curto governo Jânio e Clemente Santiago Dantas com João Goulart, ambos associados à arquitetura de uma diplomacia que defendia legalidade internacional, diversificação de parceiros, industrialização e desenvolvimento com inclusão. No plano doméstico, o projeto convergia para as reformas de base, anunciadas por Jango em 13 de março de 1964, na Central do Brasil, com foco em reforma agrária, tributária, bancária e urbana.
O golpe interrompeu essa agenda, mas não apagou sua potência nem sua atualidade, argumenta Mendes. Para ele, estudar Jango é indispensável a quem trabalha com os setores populares e democráticos, porque revela as raízes de debates que retornam, do papel do Estado no desenvolvimento à necessidade de autonomia tecnológica e produtiva. O historiador ressalta que o governo deposto não era um homem só, e sim uma frente social ampla que incluía figuras como Tancredo Neves e Leonel Brizola. “Jango representava forças e ideias que queriam um país menos dependente e mais justo”, disse.
A entrevista também resgatou o pano de fundo global. A Guerra Fria, lembrou Mendes, foi um conceito produzido pelos vencedores da Segunda Guerra e usado para justificar pressões sobre países periféricos. O Brasil dos anos 1990 viveu outra face dessa dependência, quando agendas de privatização e ajuste fiscal foram ditadas por organismos multilaterais. Ao revisitar essas camadas, o historiador desloca o foco do excepcionalismo de 1964 para a longa duração de uma disputa entre soberania e subordinação.
Ao fim, a lição de Jango aparece como tarefa de presente. Soberania, insistiu Mendes, combina escolhas domésticas e inserção externa, requer reformas estruturais, política industrial, proteção a direitos e independência de orientação diplomática. E precisa de memória ativa sobre 1964 para que não se normalizem golpes, tentativas de tutela militar e instrumentos de desestabilização. Manter essa agenda viva, concluiu, é condição para que o país volte a pensar em si mesmo como projeto.
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