Como o New York Times está sendo manipulado por narrativas da direita — e por que isso importa para o jornalismo brasileiro
Da Redação
Num momento em que o mundo enfrenta a ascensão de forças autoritárias impulsionadas por campanhas de desinformação, ataques à ciência e engenharia de narrativas, o jornalismo deveria ser uma das últimas trincheiras da democracia. No entanto, quando veículos de referência mundial como o New York Times demonstram uma vulnerabilidade crônica à manipulação — disfarçada sob o manto da “imparcialidade” — todos os sistemas de informação do Ocidente e do Sul global deveriam acender um alerta vermelho.
Foi exatamente isso que revelou o artigo publicado nesta segunda-feira dia 8 pelo The Verge, intitulada “How The New York Times is (still) getting gamed by the right” por Elizabeth Lopatto: um diagnóstico implacável de como o New York Times tem, reiteradamente, cedido às pressões da extrema-direita estadunidense, reproduzindo frames ideológicos disfarçados de jornalismo neutro. O caso mais recente? Um ataque velado contra o deputado estadual novaiorquino Zohran Mamdani — político progressista, filho de imigrantes, e ativista de causas antirracistas — por conta de uma ficha de matrícula universitária de 2009.
A narrativa da dúvida: a matéria que nunca deveria ter sido publicada
Em 2 de julho de 2025, o NYT publicou uma matéria insinuando que Mamdani teria se identificado como “negro” e “asiático” em sua aplicação à Universidade Columbia, o que poderia sugerir, ainda que implicitamente, uma tentativa de se beneficiar de políticas afirmativas. O detalhe? A informação foi obtida a partir de documentos hackeados — uma violação de privacidade evidente — cujo contexto político e origem obscura foram omitidos da reportagem.
Segundo apuração do The Verge, os documentos foram acessados após um ataque digital à Columbia, em meio ao acirramento das disputas ideológicas sobre ações afirmativas. A omissão do NYT sobre essa origem é um problema ético central. Pior ainda: o informante que “vazou” os dados ao jornal, identificado apenas como “Crémieux”, é na verdade Jordan Lasker — um militante da direita radical, conhecido por publicar textos eugenistas e por sua hostilidade declarada contra políticas de inclusão racial.
Mesmo diante de todos esses elementos, a reportagem do NYT optou por dar legitimidade à “denúncia” sem problematizar seu contexto, fonte ou finalidade. O resultado foi a construção de uma matéria que, sob o pretexto de “investigação jornalística”, produziu um conteúdo funcional à lógica de suspeição moral contra figuras progressistas — exatamente como a direita radical deseja.
O algoritmo do escândalo: como a extrema-direita captura redações
A crítica central do artigo do Verge é clara: a busca obsessiva por “imparcialidade” tem se tornado, na prática, uma porta de entrada para a captura informacional por grupos extremistas. E esse fenômeno não é novo. Desde a campanha de Donald Trump em 2016, há um movimento organizado para pressionar a imprensa a “equilibrar” todas as pautas — mesmo que isso signifique colocar negacionismo climático e ciência no mesmo pé; ou, como neste caso, colocar um político progressista na mira por causa de uma ficha racial marcada há mais de 15 anos.
O NYT, nesse cenário, age como um sistema suscetível a input externo. A extrema-direita injeta ruído, escândalo e linguagem inflamável. O jornal, em vez de desarmar a armadilha, amplifica o sinal — com o verniz da credibilidade institucional. E o leitor, por sua vez, recebe a narrativa “limpa”, sem saber que ela nasceu em um fórum da direita alternativa ou em redes anônimas de operacionais políticos.
Uma bomba moral fabricada
Mamdani não fez nada ilegal. Na verdade, nem fez nada incomum. Como tantos filhos de imigrantes, cresceu em um lar multicultural, com identidade complexa — exatamente o que a categoria “race/ethnicity” busca compreender, mesmo que mal. Sua resposta de 2009 não tinha nenhuma implicação prática. Mas, na lógica atual da política identitária conservadora, a simples percepção de que alguém “se disse negro” quando talvez “não pareça o suficiente” é transformada em escândalo.
Esse tipo de armadilha discursiva não é nova. No Brasil, vimos dinâmicas semelhantes nas campanhas contra cotas raciais, na criminalização de candidaturas negras em ações coordenadas por procuradores e juízes conservadores, e nos ataques a ativistas LGBTQIA+ por suposta “fraude ideológica”. No fundo, o objetivo é sempre o mesmo: questionar a legitimidade da presença do outro nos espaços de poder.
A imprensa como canal involuntário da desinformaçãoO que mais preocupa no caso revelado pelo The Verge é que o NYT, mesmo após críticas públicas — incluindo de seus próprios ex-editores, como Margaret Sullivan — insiste em que fez o trabalho certo. O editor político Patrick Healy argumentou que o jornal verificou os dados com Mamdani, e que publicou por interesse público. Mas se a origem é duvidosa, a fonte é ideologicamente motivada, e a pauta não revela nada de relevante sobre o presente do político, qual é o interesse público que se sustenta?
Essa insistência aponta para um problema mais estrutural: há um vício editorial em confundir “neutralidade” com “ausência de julgamento crítico”. E isso não é neutralidade. É, como diz Lopatto, permitir que narrativas ideológicas operem através da credibilidade de um jornal centenário — um “cavalo de Troia” dentro da imprensa liberal.
Por que isso deve preocupar o Brasil?
A lição para o jornalismo brasileiro é direta e urgente. Em tempos de guerra cultural e desinformação estratégica, a responsabilidade da imprensa não é fingir que todos os lados são iguais, mas sim investigar com discernimento e denunciar as tentativas de manipulação. A tática de plantar escândalos fabricados, com supostas inconsistências identitárias ou “fraudes morais”, é parte de uma agenda internacional de guerra psicológica.
No Brasil, essa estratégia já está em curso. Seja nos ataques contra universidades, nos dossiês apócrifos contra jornalistas, nas operações de lawfare ou nas campanhas digitais contra lideranças negras e indígenas — tudo parte da mesma matriz de guerra híbrida. O caso Mamdani mostra que, se até o New York Times pode ser manipulado com facilidade, os veículos brasileiros, com estruturas frágeis e muitas vezes vulneráveis ao capital político e econômico, precisam estar ainda mais atentos.
O jornalismo do futuro: julgamento responsável, não “vista de lugar nenhum”
Ao final de sua análise, Elizabeth Lopatto propõe algo que deveria ser mantra para toda redação democrática: a imparcialidade não é ausência de julgamento, mas aplicação justa de critérios morais e éticos diante de fatos. O jornalismo não pode ser apenas uma esteira que transporta ruídos para dentro do debate público.
Se a democracia depende da qualidade da informação que circula, então veículos como o NYT não podem se esquivar da responsabilidade de avaliar de onde vêm suas pautas — e a quem elas servem. O caso Mamdani não é apenas um erro isolado; é um sintoma. Um alerta. E, para quem ainda acredita em jornalismo como prática de resistência, um chamado à ação.