Atitude Popular

A nostalgia soviética é o cavalo de Troia do novo reacionarismo

A propaganda russa seduz parte da esquerda com verniz soberanista e pose anti-imperialista, mas o que ela oferece é um espelho invertido de Washington: conservadorismo, oligarquia e repressão disfarçados de resistência

Por Sara Goes

Enquanto o Ocidente se ocupa em ridicularizar a chamada “máquina de propaganda russa”, muito pouco se discute sobre a sofisticação da mídia ocidental em projetar seus próprios interesses coloniais sob o verniz da democracia liberal. É nesse vácuo de análise crítica que floresce o chamado viralismo russo, uma estratégia de comunicação transnacional que opera não apenas pela desinformação, mas pela ocupação simbólica de determinados imaginários políticos, especialmente à esquerda. Não se trata aqui de russobofia barata, mas de encarar o fato de que o putinismo construiu, ao longo das últimas duas décadas, uma rede midiática internacional afinada com os valores do conservadorismo moral, do nacionalismo imperial e da reação anticomunista travestida de realpolitik.

O lobby de imprensa ligado ao Kremlin se articula em diversas camadas: há os braços institucionais como a RT e a Sputnik, voltados à sedução de públicos críticos ao imperialismo norte-americano, há os influenciadores “alternativos” que replicam discursos putinistas em nome de uma suposta multipolaridade anti globalista, e há, por fim, a infiltração estética do niilismo como estética de resistência, onde tudo é cinismo e cálculo estratégico, menos solidariedade internacional e luta de classes.

Curiosamente, esse ecossistema de comunicação não desafia o neoliberalismo, ele apenas o dribla em nome de uma restauração civilizacional ancorada no patriarcado, na ortodoxia e na geopolítica das esferas de influência. Não há antagonismo de classe, apenas disputa entre oligarquias rivais. E ainda assim, muitos setores da esquerda confundem a retórica soberanista russa com uma continuidade do projeto socialista do século XX. Um erro brutal de leitura histórica, alimentado pela amnésia seletiva e pela incapacidade de distinguir entre defesa nacional e projeto de emancipação.

O que se revela, portanto, não é uma cruzada pela verdade, mas um teatro de sombras onde a crítica legítima ao imperialismo dos EUA é instrumentalizada para sustentar outra forma de dominação. O viralismo russo é eficaz justamente porque se esconde atrás do ressentimento antinorte-americano, oferecendo uma saída fácil, sem conflito, sem partido, sem povo. O resultado é uma esquerda cativa de suas fantasias soberanistas, incapaz de enxergar que, em Moscou como em Washington, o inimigo de ontem não é mais o mesmo, mas os anticomunistas, esses, sim, continuam exatamente onde sempre estiveram.