O Lucro, o Cinismo e a Nova Arquitetura da Guerra na Ucrânia
Enquanto Trump simula isolamento, os EUA faturam alto com a guerra e aprofundam a crise global
Por Reynaldo Aragon
O discurso isolacionista e a prática intervencionista
No dia 14 de julho de 2025, as relações entre Estados Unidos e Rússia atingem um novo patamar de tensão e cinismo. Sob o pretexto de não mais financiar diretamente a Ucrânia, o governo Donald Trump anunciou um dos maiores pacotes de armamento dos últimos meses. A diferença é que agora, em vez de ser bancado pelo Tesouro americano, o arsenal será pago pelos países europeus aliados — todos obrigados a comprar das fabricantes dos Estados Unidos. O que se apresenta como uma retirada americana do conflito, na verdade, esconde uma operação geopolítica cuidadosamente montada para manter o lucro da indústria armamentista intacto, enquanto se transfere o ônus político para os europeus. Trata-se de uma manobra que exemplifica o que pode ser chamado de cinismo estratégico: Trump finge que se afasta da guerra, mas continua no centro do conflito — politicamente, economicamente e simbolicamente.
A nova lógica de guerra por procuração
A estratégia de Trump marca uma inflexão importante no modelo clássico de guerra por procuração. Se antes a Ucrânia servia como proxy militar do Ocidente, agora vemos a Europa assumir o papel de proxy financeiro. Washington se posiciona como fornecedor privilegiado do conflito, sem assumir os custos nem a impopularidade política direta. O financiamento é terceirizado, mas o lucro permanece nacionalizado — concentrado nas mãos do complexo industrial-militar americano, que vê seus contratos se multiplicarem à medida que a guerra se prolonga. A retórica de “não gastar mais um centavo com a Ucrânia” se revela, portanto, uma ficção útil para consumo eleitoral interno, enquanto no plano geopolítico os EUA continuam comandando a engrenagem que alimenta o conflito.
A frente de batalha e a continuidade da destruição
Enquanto os diplomatas discursam, a realidade no solo permanece marcada pelo sangue e pela destruição. A Rússia anunciou avanços em regiões como Donetsk, capturando vilarejos estratégicos como Myrne e Mykolaivka. Drones russos atingiram Sumy, matando civis e provocando apagões generalizados. Em Zaporizhzhia, ataques ao redor da usina nuclear reacenderam o alarme da comunidade internacional. A Ucrânia, por sua vez, afirma ter desmantelado uma célula de inteligência russa envolvida no assassinato de um coronel em Kyiv. Os episódios mais recentes reforçam que não há sinal de desaceleração. Pelo contrário: a guerra segue em curso, com sua lógica de atrito prolongado, ofensivas pontuais e uma diplomacia paralisada.
O impasse diplomático e os interesses irreconciliáveis
O fracasso das negociações tem como pano de fundo uma contradição fundamental entre os objetivos de Kiev e Moscou. A Ucrânia exige a restauração de suas fronteiras anteriores à invasão e garantias internacionais de segurança, enquanto a Rússia exige o reconhecimento formal dos territórios que anexou, rejeitando qualquer presença da OTAN em sua zona de influência. As rodadas diplomáticas realizadas em Riyadh, Jeddah e Bruxelas resultaram em estagnação, sem convergência mínima possível. Para piorar, Trump impôs um prazo de 50 dias para que a Rússia encerre a guerra, sob ameaça de tarifas de 100% sobre seu petróleo e sanções secundárias a países que mantiverem relações comerciais com Moscou. Trata-se, na prática, de uma tentativa de expandir a guerra para o campo econômico global — chantageando parceiros estratégicos como China, Índia e até o Brasil. A medida pode isolar ainda mais os Estados Unidos no cenário internacional e fortalecer alianças alternativas ao dólar e à hegemonia ocidental.
O fortalecimento do bloco contra-hegemônico
Diante das ameaças e chantagens comerciais dos EUA, a Rússia tem reforçado sua aproximação com a China e os BRICS. No dia 13 de julho, Sergei Lavrov esteve em Pequim para reafirmar com Wang Yi a aliança “sem limites” entre os dois países, incluindo esforços conjuntos para a construção de um sistema financeiro alternativo ao dominado por Washington e Wall Street. Essa movimentação não é apenas simbólica: ela representa um realinhamento estratégico do sistema internacional, no qual atores como Rússia, China, Irã, Índia e países africanos e latino-americanos tentam escapar da lógica de sanções e da dolarização forçada. O projeto de uma nova ordem multipolar passa, hoje, pelo desgaste do poder normativo dos Estados Unidos, que seguem utilizando o dólar, o comércio e as tarifas como armas de guerra híbrida e diplomática.
A Ucrânia como peça sacrificável no tabuleiro global
No centro desse xadrez sangrento, a Ucrânia ocupa uma posição trágica: é ao mesmo tempo símbolo de resistência e vítima de uma guerra que escapa de suas mãos. A cada novo pacote de armas, a cada novo acordo internacional selado sem sua presença ativa, o país se vê menos soberano. Sua população continua pagando com a vida o preço de uma guerra que virou também espetáculo geopolítico, instrumento de lucros e palanque de discursos. A reconstrução, quando vier, será lenta e condicionada. A liberdade que o Ocidente tanto proclama como causa justa está sendo negociada em escritórios de Washington, Berlim e Londres como um contrato comercial qualquer. A soberania ucraniana se tornou um artefato simbólico a ser exibido, mas não respeitado.
O sequestro da paz e a normalização do cinismo
A guerra na Ucrânia, em julho de 2025, já não é mais apenas um conflito entre Estados nacionais. Ela se tornou o centro irradiador de uma nova arquitetura de guerra global — feita de contratos de armamento, chantagens comerciais, diplomacia simulada e alianças econômicas emergentes. A paz, neste contexto, não está travada por inabilidade diplomática, mas porque há demasiados interesses em mantê-la distante. Não há espaço para ilusões: enquanto a guerra for rentável para as elites financeiras e militarizadas do Ocidente, ela será sustentada por qualquer narrativa conveniente. A verdadeira solução não virá por meio de ultimatos de 50 dias nem por novos leilões de armas. Só será possível quando o lucro for desalojado do centro da equação. Até lá, os corpos continuarão caindo, as cidades sendo destruídas e a paz sendo sequestrada por um sistema que aprendeu a lucrar com o desastre — e a chamar isso de liberdade.