Atitude Popular

Algoritmo, trabalho e esquecimento Ensaio sobre a dissolução da consciência de classe na era algorítmica

Por Reynaldo Aragon

Não foi o algoritmo que matou o povo. Fomos nós, ao aceitarmos calados que nos convertessem em dados.

A máquina que sorri enquanto nos dissolve

Em algum momento dos últimos vinte anos, desaprendemos a levantar a cabeça. Talvez tenha começado com o clique no lugar do aperto de mão, o scroll substituindo a raiva, as notificações tomando o lugar da fome por justiça. Não houve explosão nem decreto. A classe trabalhadora não caiu diante de tanques, mas foi sedada pela eficiência, desmobilizada pelo design, engolida por telas que sorriem enquanto nos esvaziam.

A máquina venceu pela suavidade. Não impõe, recomenda. Não censura, sugere. Não ordena, convida. E nós obedecemos, condicionados a crer que pertencer é estar conectado, existir é interagir, e lutar se tornou sinônimo de cansaço.

Cada deslizar de dedo, cada aceite automático dos termos de uso, reprograma a experiência do mundo. Perdemos o peso do tempo, o valor do encontro, o sentido da organização. Esquecemos que éramos povos, que a dor do vizinho é a mesma que a nossa. Justiça não se constrói com recomendações personalizadas, e amor sem luta é encenação.

O algoritmo chegou como alívio. Apresentou atalhos e soluções, ofereceu mapas do caos. Apagou, junto com eles, o gesto comum, o corpo a corpo. A fábrica virou app, o sindicato virou fórum, a reunião virou grupo de mensagem. A raiva coletiva, ansiedade individual.

Parecia mais leve, mais nosso. Mas era programado. Curado. Otimizado. Já não lembramos como levantar a cabeça. Nem por que ela foi feita para olhar nos olhos, e não para se curvar ao feed.

A dissolução do comum

O trabalho, por séculos, foi mais do que esforço: foi espaço de reconhecimento e dignidade. No cabo da enxada ou no som da fábrica, surgia consciência. Não dos livros, mas do chão. A exploração tinha rosto, nome, sistema. E sabíamos: só juntos poderíamos transformar.

O capitalismo da fricção zero não eliminou o trabalho. Apenas o disfarçou. A exploração foi embrulhada em estética de autonomia, flexibilidade e inovação. A escravidão ganhou interface simpática.

O entregador não entra mais em greve, apenas não loga. A professora não discute salário, apenas revisa a plataforma. O jornalista não enfrenta o editor, aceita o algoritmo. O operário não vê o dono da fábrica, interage com o app. Produzimos sozinhos, sofremos sozinhos.

As plataformas entenderam o essencial: o trabalho só ameaça a ordem quando vivido em comunidade. Por isso, nos isolaram. Viramos logins, KPIs, dados previsíveis. Acreditamos estar livres, quando estamos apenas desorganizados.

A arquitetura digital foi desenhada para impedir o nascimento da política no trabalho. Tudo é feito para que você se sinta descartável, monitorado, livre apenas para sair, nunca para resistir. Vínculo exige tempo, corpo e escuta. Mas o tempo virou métrica, urgência, deadline. O encontro desapareceu.

A dominação que parece escolha

Nos ensinaram a ver o algoritmo como cálculo neutro. Mas ele é o operador da dominação, o novo capataz do capital. Não grita, não ordena, não se mostra. Prevê, silencia, recomenda e pune — sem rosto, sem nome.

Programado com a lógica de classe, o algoritmo escolhe o mais conveniente para quem controla a produção digital. Enterra mobilização, realça distração, troca tempo de reunião por tempo de tela. Transforma vínculo em engajamento.

Ele nos forma sem ensinar, nos modula sem declarar. É ideologia encarnada. Um Estado terceirizado que não precisa legislar, pois já controla pela interface. A nova elite não usa uniforme, nem força. Governa pelo design.

Enquanto isso, somos reconfigurados como usuários gratos pela prisão digital apresentada como liberdade. O algoritmo não decide sozinho, mas automatiza decisões da elite, encena-as como inevitáveis, e nos ensina a sorrir enquanto nos dissolve.

A guerra contra o tempo e o encontro

A política nasce do tempo. A solidariedade exige demora. O pensamento precisa de pausa. Mas o algoritmo rejeita tudo isso. O capital digital sabe que o perigo mora onde o tempo desacelera.

Vivemos sob a ditadura da urgência. Tudo precisa ser imediato. “Você viu?”, “Respondeu?”, “Clicou?”. É a lógica da fricção zero. Sem espera, sem resistência. Mas, quando o tempo morre, morre também o encontro.

O algoritmo não quer que a gente pare, nem escute, nem repare. Quer que a gente reaja, sempre sozinhos. Os espaços de organização popular viraram interações ansiosas. A empatia virou emoji, o abraço virou figurinha, a dor virou thread. Estamos cercados, mas sós. Conectados, mas exaustos.

Desejo capturado, política esvaziada

Sem presença, não há povo. E presença exige tempo, corpo e escuta. A destruição do tempo compartilhado é também a destruição da política como invenção popular.

A aceleração não é falha, é estratégia. Movimento sem deslocamento, engajamento sem consequência. Se quisermos retomar o fio da história, precisamos recuperar o tempo, devolver à política seu ritmo próprio. Não haverá revolução em tempo real. Toda revolução exige lentidão.

O desejo, antes força coletiva, foi capturado. Redirecionado. Transformado em mercadoria, clique, ansiedade. A raiva que moveu greves virou performance. O desejo de ruptura virou marca pessoal. Cada dor virou segmentação.

A subjetividade, antes forjada no embate com o sistema, agora evita o conflito. Vivemos sob a pedagogia da adaptação. Aprendemos a ser resilientes. Mas ninguém nos ensina a odiar o 

A derrota programada

Não ouvimos gritos, mas fomos derrotados. Sem sangue, sem mártires. Perdemos pela distração e conveniência. O algoritmo venceu sorrindo, e nós agradecemos.

Permitiu a insatisfação, desde que expressa dentro da moldura. Estamos decepcionados, mas não organizados. Cansados, mas não insurgentes. Essa é a pior das derrotas: a que vem pela adaptação.

É preciso dizer em voz alta: perdemos a guerra pelo desejo, pelo tempo comum, pela coragem de sustentar o conflito. E essa derrota não dói como deveria. Ela se disfarça de maturidade, mas é a maturidade do vencido.

Reconhecer a derrota é o primeiro gesto de quem se recusa a aceitar o fim como destino. Talvez seja da vergonha que brote novamente a fúria.

Reconstruir o chão

O algoritmo venceu. Mas ainda resiste o sopro antigo da organização popular. Não nas plataformas, mas nos territórios onde o silêncio do sistema não se completou.

Se a dominação é algorítmica, a resistência precisa ser informacional, mas nunca digitalizada. A saída não está nos códigos, e sim nas redes de corpo, tempo e memória. O caminho começa pela base viva do povo trabalhador.

A resposta não será técnica, será política. Lenta, cheia de ruídos e contradições, mas nossa. Precisamos reconstruir espaços de formação política radical. Valorizar a conversa presencial, a escuta longa, o vínculo comprometido. Criar nossas próprias redes, nossos meios, nossas pedagogias.

A reconstrução da consciência de classe não virá dos trending topics. Virá do chão, do conflito partilhado, da raiva transformada em laço. A revolução começa quando o povo volta a se reconhecer.

Romper com a estética da vitrine, com a pressa sem direção. Romper com a lógica que nos treina para agradar e esquecer. Voltar à política como ato de desobediência. O algoritmo exige ordem. A luta começa na desordem.

Virar grito

É hora de reconstruir o chão com os pés, com a memória, com o povo. E quando esse chão estiver firme, virar grito. Porque já não há eco. As palavras batem nas paredes lisas e voltam em forma de silêncio.

Mas há um momento em que o corpo, cansado de estar online, exige presença. Exige chão. Exige povo. E então deixamos de esperar retorno e nos tornamos grito. Um grito sem filtro, sem agendamento, sem permissão.

Gritar como quem perdeu tudo, menos a capacidade de se organizar. Como quem recusa a resignação disfarçada de maturidade. Como quem lembra que já foi perigoso, e pode voltar a ser.

Este texto é esse grito. Contra o apagamento do desejo. Contra o sequestro do tempo. Contra a captura da vida.

Mas um grito sozinho não move o mundo. O que move o mundo é o coro. E o coro só nasce no encontro, na escuta, na desobediência partilhada.

Se esse texto te doeu, não o compartilhe. Levante. Junte-se. Reconstrua. Desobedeça.

Se não for agora, quando? Se não for com raiva, com o quê? Se não for com o povo, para quê?

Quando não há mais eco, é preciso virar grito.

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