Da Redação
Em meio à pior crise econômica em décadas, inflação alta, escassez de combustíveis e uma esquerda fragmentada, a Bolívia vai às urnas neste domingo (17) para uma eleição que pode encerrar quase vinte anos de hegemonia do MAS. A volta da direita recoloca na mesa privatizações, ajuste duro e reorientação geopolítica que ameaça o projeto de soberania construído desde 2006.
A eleição deste domingo na Bolívia é um plebiscito sobre o projeto de país erguido a partir de 2006. O Movimento ao Socialismo nasceu como expressão política de sindicatos camponeses, mineiros e movimentos indígenas, reestatizou setores estratégicos, elevou renda e reduziu pobreza na era do gás caro, e projetou La Paz como voz altiva na América do Sul. Esse ciclo chega ao seu ponto mais frágil. A crise econômica corroeu o contrato social, e a divisão interna entre as correntes ligadas a Evo Morales e a Luis Arce quebrou a unidade que dava lastro ao bloco popular. Ao mesmo tempo, antigos atores conservadores voltaram a captar o descontentamento urbano, prometendo estabilização macroeconômica rápida, redução de subsídios, abertura a capitais e um reordenamento das alianças externas.
A deterioração material é palpável. A escassez de dólares levou ao racionamento de importações, os subsídios encareceram e tornaram-se insustentáveis no caixa do Estado, e as filas por diesel e gasolina multiplicaram protestos e bloqueios. A inflação, por anos entre as mais baixas do continente, acelerou e atingiu patamares inéditos nesta geração. O símbolo dessa compressão chega à mesa: o pão subsidiado encolheu de tamanho, padarias fecharam, e o preço dos básicos explodiu nos mercados populares. Em El Alto e nos cinturões urbanos, onde o MAS sempre foi hegemônico, o humor virou — e com ele a disposição de sustentar o projeto que já não entrega a tranquilidade de ontem.
O terremoto não é apenas econômico. A tentativa de golpe frustrada em 2024, seguida de acusações de autogolpe, expôs a fragilidade das instituições e aprofundou a desconfiança mútua entre facções. Desde então, a política opera em marcha forçada: o judiciário desabilitou Evo Morales; o presidente Arce perdeu apoio parlamentar; e o MAS fragmentado lançou nomes sem lastro nacional, enquanto lideranças intermediárias migraram para projetos próprios. A consequência prática é uma eleição aberta como não se via desde 2005, com múltiplas candidaturas competitivas e um eleitorado descrente.
Nesse vácuo, a direita reorganizada reaparece com duas promessas centrais. Primeiro, ajuste. O discurso é de “choque de confiança” com corte de subsídios, câmbio unificado, âncora fiscal contundente e metas anti-inflacionárias críveis. A mensagem é sedutora a parte da classe média urbana exausta das filas e da carestia, mas carrega risco social: retirar amortecedores de preço num país de renda média-baixa e alta informalidade pode acender conflitos. Segundo, reorientação estratégica. Isso significa colocar em revisão o modelo de Estado como sócio controlador em energia, mineração e, sobretudo, lítio; flexibilizar exigências de conteúdo local; e reposicionar a política externa para um eixo mais alinhado a Washington, organismos financeiros e capitais ocidentais, ainda que mantendo pontes com Europa e vizinhos.
O lítio é a pedra de toque da soberania boliviana. O país detém uma das maiores reservas do mundo, mas patina em transformar salmoura em valor. A estratégia estatal dos últimos anos combinou sociedade majoritária da YLB com consórcios estrangeiros e tecnologia de extração direta. Ao mesmo tempo, decisões judiciais recentes travaram projetos com grupos chineses e russos, revelando o grau de politização e a disputa internacional ao redor do recurso. A direita acena com “destravar” investimentos via segurança jurídica pró-mercado, concessões mais longas e regras mais previsíveis. O desenho concreto importa: um giro que dilua a participação estatal ou afrouxe contrapartidas pode converter o “ouro branco” em mais um ciclo extrativista com pouca captura nacional de tecnologia, renda e cadeias de valor.
A segurança alimentar e energética também entram no tabuleiro. O regime de subsídios foi o coração do pacto social mas hoje pesa no orçamento, pressiona o déficit e depende de dólares que rarearam com a queda das exportações de gás. Ajustar com bisturi é tarefa de Estado; ajustar com machado é receita para convulsão. Uma vitória conservadora pode acelerar cortes para recuperar reservas e crédito, mas encontrará resistência de corporações organizadas, federações camponesas e juventudes que já provaram sua força nas ruas. Sem amortecedores e diálogo territorial, o “remédio” pode produzir recessão, desemprego e um novo ciclo de ingovernabilidade.
Há, ainda, o componente democrático e cultural. O ciclo do MAS, com todos os seus erros, colocou povos indígenas e trabalhadores no centro simbólico do Estado. A revanche cultural — mais sutil que o programa econômico — é parte do pacote de retorno conservador na região: redefine prioridades orçamentárias, muda a gramática das políticas públicas, recua em demarcações e regulações socioambientais, e rebaixa a participação social a ritos formais. Esse movimento, observado em vizinhos nos últimos anos, tende a reduzir a potência dos sujeitos populares como atores políticos.
No curto prazo, o mais provável é um segundo turno duro. O voto nulo convocado por Evo tenta deslegitimar o processo e castigar tanto a direita quanto o arceísmo, mas também pode abrir a porta para que dois polos conservadores monopolizem o segundo turno. Sem um campo progressista minimamente recomposto, a agenda será ditada por quem prometer “ordem e preço baixo” com linguagem simples. No médio prazo, qualquer governo herdará um passivo fiscal elevado, reservas exíguas, dívida alta, setor externo frágil e uma economia que precisa simultaneamente estabilizar, atrair investimento e preservar o tecido social.
A defesa da soberania — energética, mineral, alimentar e informacional — dependerá menos de slogans e mais de engenharia institucional. A Bolívia precisará, qualquer que seja o vencedor, blindar a governança do lítio com transparência e participação social, redesenhar subsídios com focalização e metas temporais, reestruturar a política cambial com um programa claro de recomposição de reservas e, sobretudo, reconstruir legitimidade com um pacto de transição que envolva cidades e campo. Sem isso, o país corre o risco de repetir o pêndulo latino-americano: austeridade abrupta, explosão social, paralisia, novo giro e mais uma década perdida.
O sentido histórico desta eleição é inequívoco. Não se trata apenas de trocar governantes, mas de decidir se o Estado continuará ambicionando controlar suas alavancas estratégicas ou se terceirizará o futuro à racionalidade do capital externo em nome de uma estabilidade rápida. O preço da pressa pode ser a entrega definitiva dos recursos que poderiam financiar a modernização inclusiva. O preço da inércia, por outro lado, é a erosão lenta da legitimidade. Entre o choque liberal e o gradualismo soberano, a sociedade boliviana precisa inventar um terceiro caminho: estabilizar sem renunciar à soberania.