Da Redação
Um levantamento inédito produzido em conjunto por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Brasília (UnB) revela números que escancaram a dependência tecnológica do setor público brasileiro: entre junho de 2024 e junho de 2025, o país gastou mais de R$ 10,35 bilhões com licenças, serviços de nuvem e outros produtos tecnológicos fornecidos por empresas estrangeiras. O valor, apontam os pesquisadores, supera o orçamento de ministérios inteiros e seria suficiente para garantir bolsas integrais de pós-graduação a todos os cerca de 350 mil mestrandos e doutorandos do Brasil durante um ano inteiro.
Realizado pelo Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (GETIP-USP), em parceria com o Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI-UnB), o estudo consolidou informações dispersas em cinco bases de dados governamentais e calculou que, desde 2014, o setor público brasileiro já desembolsou ao menos R$ 23 bilhões com contratos de tecnologia de informação e comunicação (TIC).
Em termos proporcionais, o montante gasto no último ano seria suficiente para manter toda a estrutura da Universidade de Brasília (UnB), incluindo professores, técnicos, terceirizados e a infraestrutura de ensino, por até quatro anos e meio. Se convertido em investimentos na construção de infraestrutura nacional, os R$ 23 bilhões gastos ao longo dos últimos dez anos poderiam ter financiado ao menos 86 data centers de padrão internacional, fortalecendo a autonomia tecnológica do país.
Nuvem e software estrangeiros dominam contratos públicos
A pesquisa detalha que, somente entre janeiro de 2023 e junho de 2025, o setor público brasileiro contratou R$ 5,97 bilhões em licenças de software, R$ 9 bilhões em soluções de computação em nuvem e outros R$ 1,91 bilhão em serviços de segurança digital — áreas consideradas estratégicas para a soberania e proteção de dados do país.
Entre as empresas que concentram a maior parte desses contratos estão gigantes globais como a Microsoft, responsável por R$ 3,27 bilhões em contratos no período (sendo impressionantes R$ 1,65 bilhão apenas no primeiro semestre de 2025); a Oracle, com R$ 1,02 bilhão; o Google, com R$ 938 milhões; e a Red Hat, com R$ 909 milhões. Parte considerável desses valores é negociada por meio de intermediários especializados em comercializar licenças para o setor público, segundo os pesquisadores.
O coordenador do estudo, Ergon Cugler, pesquisador do CNPq, não economiza críticas ao modelo atual de compras governamentais. “Não faz sentido o Brasil gastar bilhões de reais em contratos com fornecedores estrangeiros de tecnologia enquanto nossas universidades e centros de pesquisa operam com orçamentos apertados há décadas”, afirma. Para ele, os contratos acabam subsidiando a inovação de outros países, em vez de estimular soluções nacionais que gerariam empregos qualificados, autonomia tecnológica e desenvolvimento científico.
Riscos à soberania digital
Além do levantamento quantitativo, o estudo faz um alerta: ao terceirizar infraestrutura crítica para empresas globais, o Brasil mina sua autonomia tecnológica, reduz sua capacidade de defesa e inviabiliza o surgimento de soluções públicas nacionais. “Quando todos os nossos sistemas operam em plataformas estrangeiras, sob regras que não controlamos, perdemos mais do que dinheiro, perdemos soberania”, diz Cugler.
Segundo ele, o país tem quadros técnicos, universidades e capacidade científica suficientes para desenvolver soluções próprias, mas falta decisão política e estratégica. “Com os mesmos recursos que hoje sustentam as Big Techs, poderíamos financiar datacenters nacionais, segurança digital sob jurisdição própria e milhares de empregos qualificados. É uma escolha que pode mudar nossa Ciência”, completa.
Impactos comparáveis ao investimento educacional
Os dados chamam ainda mais atenção quando comparados ao orçamento da educação e da ciência no país. O estudo calculou que, com o valor gasto apenas entre junho de 2024 e junho de 2025, seria possível pagar bolsas integrais de mestrado e doutorado a todos os 350 mil pós-graduandos brasileiros, com valores atualizados de R$ 2.100 para mestrandos e R$ 3.300 para doutorandos — quantia considerada estratégica para a formação de quadros de alta qualificação.
Além disso, os R$ 23 bilhões gastos desde 2014 superariam largamente os recursos destinados a programas de inovação científica e tecnológica no mesmo período, segundo os autores.
Falta de transparência e dados fragmentados
O trabalho dos pesquisadores também evidencia graves lacunas na transparência do setor público. Os bancos de dados analisados — ComprasNet e Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), entre outros — não são padronizados e apresentam inconsistências, dificultando o controle social e o monitoramento de gastos. Ainda assim, os pesquisadores consideram os R$ 23 bilhões como um valor mínimo, já que sobreposições e contratos não registrados podem elevar a conta real ainda mais.
Reflexão estratégica
Para os responsáveis pelo estudo, o que está em jogo não se resume a cifras bilionárias, mas ao projeto de país que se pretende construir. O Brasil, argumentam, abre mão de um “ciclo virtuoso de inovação local” ao optar por comprar tecnologias prontas, fechando portas para startups nacionais, institutos públicos e redes de universidades que poderiam atender às demandas do governo com soluções próprias.
“Cada contrato fechado com uma multinacional é uma porta fechada para a inovação local”, sintetiza Cugler. Para ele, priorizar fornecedores nacionais — mesmo que em uma transição gradual — seria o caminho para alavancar a autonomia digital do Brasil, gerar empregos qualificados e fortalecer a soberania tecnológica.
O estudo, coordenado pelo pesquisador Ergon Cugler (USP/CNPq) e desenvolvido em parceria com Isabela Rocha (UnB), José Carlos Vaz (USP), Camila Modanez (FESPSP) e Julia Veneziani (USP), reúne especialistas do Grupo de Estudos em Tecnologia e Inovações na Gestão Pública (GETIP-USP) e do Grupo de Trabalho Estratégia, Dados e Soberania do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI-UnB). O time multidisciplinar analisou, pela primeira vez de forma integrada, bancos de dados fragmentados sobre compras públicas de tecnologia, com o objetivo de dimensionar os contratos governamentais e evidenciar seus impactos para a soberania digital do país.