Da Redação
O tarifaço, as sanções e a retórica hostil de Washington ao Brasil rearranjaram o tabuleiro interno: a base bolsonarista se sente fortalecida, testa motins regimentais, força anistia aos 8/1 e pressiona por mudanças no foro. O objetivo não é votar; é impor derrotas políticas sucessivas e corroer a autoridade das instituições.
A escalada de tensão entre Estados Unidos e Brasil desde julho redesenhou o ambiente político em Brasília. A resposta imediata foi econômica, com tarifas e ameaças de novas sanções atingindo cadeias de exportação e incendiando o noticiário. O efeito colateral foi político: a bancada de extrema-direita na Câmara entendeu a crise como janela de oportunidade e assumiu postura de confronto permanente, transformando o plenário em palco de obstruções coordenadas, tentativas de ocupação e chantagem institucional. O cálculo é simples e brutal. Ao acoplar a pauta doméstica às pressões externas, a oposição cria temperatura para exigir concessões legislativas e impor sua agenda por atrito, mesmo sem maioria.
O episódio-síntese ocorreu na primeira quinzena de agosto, quando deputados de oposição ocuparam a Mesa Diretora e ameaçaram repetir a operação se a presidência da Casa não avançasse com dois itens: uma anistia ampla aos envolvidos no 8 de Janeiro e a votação de mudanças no foro por prerrogativa de função. A obstrução articulada, com pernoite nos plenários e encenação midiática, tinha um alvo tático imediato — forçar pauta e derrotar a narrativa de isolamento — e um alvo estratégico de médio prazo: normalizar métodos de exceção no cotidiano legislativo. Mesmo derrotada no curto prazo, a tática cumpriu uma função política evidente ao impor custos à governabilidade e amplificar na opinião pública a sensação de impasse.
Esse roteiro não nasce do nada. Ele é o capítulo mais recente de uma estratégia de “golpe por etapas”, conduzida no varejo do regimento: verificação de quórum para derrubar sessões, enxurrada de requerimentos de retirada de pauta e adiamento de discussão, tentativas de ocupação física para impedir o início dos trabalhos, ameaças explícitas de novo motim. O objetivo não é aprovar uma lei específica, mas deslocar o centro de gravidade institucional por desgaste contínuo, retirando do governo e da maioria os instrumentos ordinários de agenda. É uma guerra de atrito travada com ferramentas parlamentares.
A conexão com a crise externa é um acelerador. Ao apresentar as tarifas e sanções como “reação” a uma suposta perseguição judicial ao ex-presidente, lideranças bolsonaristas tentam converter constrangimentos econômicos em capital político doméstico. O enredo mira dois efeitos. Primeiro, blindar o próprio campo: diante do público fiel, o adversário não é a desordem institucional do 8 de Janeiro, mas o “globalismo” que retaliaria o Brasil por “defender a liberdade”. Segundo, pressionar o centro político: quando a pauta do plenário trava por obstrução, cresce a tentação de liberar temas caros à oposição — como a anistia — em troca de “desarmar” o ambiente.
Os fatos mais recentes mostram os limites e os riscos desse jogo. A maioria dos líderes barrou, por ora, a anistia e a mudança no foro. A presidência da Câmara reorganizou prioridades e retirou do horizonte imediato as duas propostas, indicando que não aceitará a lógica de recompensa ao motim. Mas a oposição já mudou o método: se a ocupação física cobra preço alto perante a opinião pública, a obstrução silenciosa, por dentro do regimento, produz efeito semelhante com menor desgaste. É a institucionalização do tumulto por meios “legais”, enquanto a retórica sobrevive nas redes com a tradução simplificada de que “o sistema teme votar”.
O elo com Washington funciona como narrativa-mestra para manter a coesão do bloco. A ofensiva tarifária americana é exibida como prova de força do aliado externo e como instrumento pedagógico para punir o Brasil por “excessos”. Na prática, é um incentivo à radicalização: quanto maior a crise, maior a chance de paralisar a pauta e negociar concessões sob pressão. Essa mecânica também empurra o bolsonarismo a um reposicionamento tático previsível. Se a anistia não avança, o bloco mira outros flancos, como comissões de inquérito, projetos para esvaziar competências de órgãos de controle, alterações processuais que fragilizam o enfrentamento ao extremismo e, sobretudo, a corrosão simbólica da autoridade do Supremo.
O que está em curso não é uma disputa ordinária por votos, mas uma engenharia de desgaste pensada para reescrever, pelo uso iterado de “pequenas vitórias”, as fronteiras do aceitável. A insistência na anistia rebaixa a gravidade do 8 de Janeiro a “protesto”, constrói a equivalência moral entre agressor e instituição atacada e acostuma o sistema político à ideia de que crimes contra a ordem democrática são passíveis de negociação. Já a cruzada pelo “fim do foro” serve a dois propósitos contraditórios e, por isso mesmo, eficazes como arma retórica: quando interessa, funciona como ameaça difusa contra autoridades; quando não interessa, converte-se em moeda de troca para destravar negociações em outros temas.
Há, contudo, freios importantes no tabuleiro. A base governista e partidos do centro ainda controlam a formação de pauta e preservam maioria suficiente para bloquear aventuras. O Supremo mantém jurisprudência firme sobre a tentativa de golpe e desincentiva a tese de anistia ampla. E a sociedade, embora fatigada pela crise econômica alimentada de fora, não demonstra apetite por soluções excepcionais. Por isso, a extrema-direita aposta na repetição. Golpes consecutivos, aqui, não significam ruptura espetacular, mas a soma de atos menores que, mantidos no tempo, deslocam o padrão democrático.
Se a crise com os Estados Unidos se alongar, a tendência é de novas rodadas de obstrução, novos testes de força sobre temas sensíveis e novas tentativas de arrancar concessões em troca de “pacificar” o ambiente. O Brasil vive, portanto, uma dupla prova de estresse. No plano externo, precisa administrar choques comerciais e diplomáticos sem abrir mão de soberania. No plano interno, precisa impedir que a crise seja instrumentalizada para normalizar o anormal dentro do Parlamento. A resposta passa por três linhas simultâneas: transparência total nas negociações comerciais para neutralizar narrativas conspiratórias; disciplina de maioria na condução da pauta, com disposição para votar o que for possível e isolar os tumultos; e comunicação política que traduza, para além de bolhas, o custo real da anistia e dos atalhos regimentais para a democracia.
A conjuntura é dura, mas clara. A estratégia de “golpe por etapas” depende do cansaço do adversário e da adesão silenciosa de espectadores desinformados. Quando as instituições se mantêm coesas e didáticas, esvaziam a chantagem e transformam derrotas táticas da extrema-direita em boomerang de desgaste. É esse o caminho para que o Brasil atravesse a crise externa sem converter o Parlamento em laboratório de rupturas sucessivas.