Atitude Popular

Espanha reconhece “injustiça” da colonização no México

Da Redação

Após décadas de tensão diplomática, o governo da Espanha admitiu que durante sua colonização causou “dor e injustiça” aos povos indígenas do México. O movimento abre caminho para uma reconfiguração simbólica das relações ibero-americanas e põe em relevo os dilemas de memória, reparação e soberania histórica.

Em um gesto histórico, o governo espanhol deu nesta semana um passo qualitativo ao reconhecer que sua presença colonial no México legou “dor e injustiça” aos povos indígenas daquele país. O pronunciamento foi feito pelo chanceler espanhol, que durante a abertura de uma exposição em Madrid sobre mulheres indígenas mexicanas afirmou que a história conjunta entre Espanha e México é “uma história muito humana, e como toda história humana, cheia de luzes e sombras”. Ele acrescentou: “Houve dor — dor e injustiça em relação aos povos indígenas. Houve injustiça — é justo reconhecê-la hoje, e justo lamentá-la. Porque isso também faz parte da nossa história comum; não podemos negá-la nem esquecê-la.”

A declaração representa uma guinada simbólica relativamente rara: até pouco tempo atrás, Madrid recusava categoricamente apresentar qualquer reconhecimento de responsabilidade ou pedido formal de desculpas pelos excessos da conquista espanhola e do período colonial nas Américas. Em 2019, quando o então presidente mexicano enviou carta ao rei da Espanha solicitando um pedido de desculpas formal, Madrid respondeu que os atos coloniais não poderiam ser julgados segundo parâmetros contemporâneos e que a história deveria ser vista “sem raiva e de perspectiva compartilhada”.

O novo posicionamento espanhol surge num contexto diplomático mais amplo de reaproximação com o México, que vinha mantendo reservas nas relações desde que exigiu reparações simbólicas por abusos históricos. A exposição inaugurada em Madrid, fruto de cooperação cultural entre os dois países, serviu como plataforma para o gesto de reconhecimento, em meio a um ambiente de esforços mútuos por reconstruir narrativas sobre o passado colonial e suas consequências persistentes.

Para o México, o governo saudou as declarações como um “importante primeiro passo” rumo à reconciliação. A presidente mexicana declarou que as palavras elevam os governos e os povos que reconhecem suas histórias, ao dizer que “perdoar não humilha — ao contrário, eleva”. Em seus pronunciamentos, ela reforçou que a trajetória indígena do país — marcada por destruição de culturas, línguas, conhecimentos tradicionais e formas de vida — deve ser reconhecida como parte central da identidade nacional.

Do ponto de vista histórico-estratégico, a fala espanhola deixa quatro implicações diretas:

  1. Memória e reparação simbólica: O reconhecimento de Madrid insere-se num movimento global em que antigas potências coloniais confrontam seus passados com maior franqueza. Esse tipo de gesto não elimina os desafios de reparação, mas altera o marco simbólico da relação entre ex-colônia e ex-metrópole.
  2. Narrativa de soberania cultural: No México, ao reivindicar visibilidade para a cosmovisão indígena, o episódio reforça o componente de soberania histórica e cultural — ou seja, trata-se de no centro resgatar não só vítimas mas sujeitos ativos dessas histórias.
  3. Geopolítica ibero-americana: A reaproximação entre Espanha e México pode ter impactos práticos em cooperação cultural, diplomática e econômica, mas também exige que os dois países lidem com tensões residuais — entre elas, o legado da colonização, da evangelização, da imposição de línguas e instituições e da persistente desigualdade.
  4. Limites do reconhecimento sem reparação formal: Embora haja reconhecimento de “injustiça”, a Espanha parou-se em um “lamentar” sem se comprometer com um pedido de desculpas formal ou uma agenda de reparações concretas. Isso mantém viva a questão de fundo: até onde a história será “reconhecida” e em que medida esse reconhecimento se traduz em transformações institucionais, econômicas ou simbólicas tangíveis.

Para o público latino-americano, o evento serve de alerta. A história colonial não está congelada no passado — seus efeitos reverberam em dinâmicas econômicas, culturais e de poder. No caso mexicano, a “injustiça” reconhecida inclui não apenas guerras de conquista, mas doenças trazidas pelos colonizadores, desapropriação territorial, destruição de línguas, imposição religiosa, formas de trabalho compulsório e marginalização dos povos originários. Essas camadas estruturais permanecem na agenda política nacional.

Sob a perspectiva de soberania informacional — que é um dos eixos de sua análise, Rey — o caso ilustra como o controle sobre memória, cultura e narrativa se entrelaça com poder. Quando uma antiga potência colonial admite erros, está também transferindo parte dos termos de debate para o campo simbólico: quem conta a história, quem a valida, quem define suas consequências. Para o México, isso pode configurar uma oportunidade de reposicionar sua própria agência, de reafirmar redações históricas internas e avançar em soberania cultural — assim como em outras esferas tecnológicas e informacionais.

Porém, há riscos. O reconhecimento pode funcionar como catarse simbólica que acalma exigências políticas mais profundas. Sem correspondências ao nível de políticas de reparação, investimentos em desenvolvimento indígena, reformas territoriais ou fortalecimento de línguas nativas, o gesto pode perder substância e ser percebido como cosmético. A pergunta que permanece é: o que virá depois da palavra “injustiça”?

Na arena internacional, o movimento espanhol pode servir de precedente para outras potências coloniais que evitavam reconhecer o papel que tiveram em processos de dominação. A articulação entre cultura, diplomacia e memória está cada vez mais presente em estratégias de soft-power, e o México identificou nessa nova gramática uma chance de reposicionar sua presença internacional — sobretudo à medida que países do Sul Global buscam reescrever suas histórias de dependência e imbricação colonial.

Para o Brasil e para os demais países da América Latina e Caribe, a lição é dupla: primeiro, que a história colonial segue sendo campo de disputa — dentro e fora dos palácios diplomáticos; segundo, que reconhecer a própria agência nacional na construção de narrativas pode abrir vias de autonomia que vão além da linguagem técnico-diplomática: envolvem cultura, tecnologia, educação e memória.

Em suma, o que se revelou agora não é apenas uma declaração diplomática, mas uma faísca num processo de reconstrução de relações — entre Espanha e México — e na contestação das formas como a colonização a ainda molda o presente. O gesto espanhol é relevante: abriu uma via de diálogo que estava há tempo trancada. Resta saber se ele será acompanhado de ações concretas que correspondam à gravidade da injustiça admitida. Caso contrário, o reconhecimento poderá ficar preso ao simbólico — e o poder de transformação real se verá reduzido.