O julgamento dos acusados pela Chacina do Curió expõe a luta de mães que transformaram o luto em ação coletiva por justiça e por uma nova cultura de segurança pública
A Chacina do Curió, ocorrida em 2015, em Fortaleza, quando 11 jovens foram assassinados em uma única noite, voltou ao centro do debate público com os desdobramentos do julgamento dos acusados. A discussão foi tema do Programa Democracia no Ar, da Rádio e TV Atitude Popular, que entrevistou Edna Carla, fundadora do Coletivo Mães da Periferia e mãe de uma das vítimas. A matéria se baseia na entrevista exibida na edição de 30 de setembro, disponível no canal do programa, que reúne relatos, análises e informações sobre o processo judicial em andamento.
Logo no início, Edna Carla sintetizou o sentido político da mobilização que a levou das ruas às salas de audiência: “Eu não vou financiar a bala que matou meu filho.” A frase nasceu do reconhecimento de que policiais são servidores públicos, pagos pela sociedade para proteger vidas, e não para eliminá-las. “Eu não posso ter medo de quem eu pago”, afirmou. Para ela, quando um policial mata, deve responder como qualquer outro autor de homicídio, com acréscimo de responsabilidade por violar a lei que deveria defender. “Todo crime tem suas consequências”, disse.
Julgamento por núcleos e responsabilidade do Estado
A apresentadora, Sara Goes, explicou que o julgamento segue dividido em núcleos de responsabilidade, recurso processual que busca organizar a extensão dos crimes e a participação de cada acusado. A convidada reforçou que a complexidade do caso exige trabalho minucioso das instituições. “Agradeço muito o Ministério Público por ter feito um trabalho tão prestativo e digno”, disse, lembrando também a atuação da Defensoria Pública. Edna relatou que o caminho até essa cooperação passou por cobrança firme: “Eu não saí da minha casa para pedir amizade, eu saí para pedir justiça.”
Ao longo do programa, surgiram episódios que revelam as camadas de violência e impunidade que cercam crimes dessa natureza. Foi citado, por exemplo, o caso de um policial condenado a quase 280 anos, que também teria condenação por fraude de visto nos Estados Unidos. O ponto, para Edna, é que nenhuma circunstância justifica execuções. “Fatalidade é acidente, não é operação planejada para matar alguém”, disse.
Do luto à ação pública
Edna narrou seu percurso pessoal depois do assassinato do filho, aos 17 anos. Primeiro, a recusa em aceitar que a polícia pudesse ser autora do crime, ainda mais por ele ser neto de policial militar. Em seguida, a decisão de ocupar espaços públicos, cobrar investigações e dar forma organizada à dor. “Eu entendi que dentro da periferia os jovens têm direito de viver, de estudar”, disse. Em 2020, ao perceber mães em risco de suicídio durante a pandemia, Edna ampliou sua atuação e fundou o Coletivo Mães da Periferia, criando uma rede de acolhimento com psicologia, alimentação e cuidados.
Dessa experiência nasce o “Dia da Beleza”, um encontro anual que oferece kits de autocuidado e ensaios fotográficos. A iniciativa aparece na entrevista como gesto político de reconstrução de autoestima e de recusa ao confinamento no sofrimento: “Nós não somos coitadinhas. Eu estou aqui falando pelo meu filho.” Edna também relatou sua atuação como pesquisadora social em parceria com universidades e organismos internacionais, em especial com o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da UNIFESP e projetos com a Universidade de Harvard e a ONU, iniciativas que registram impactos, estratégias de enfrentamento à violência e práticas de reparação simbólica.
Segurança pública que proteja vidas
Para Edna, a transformação necessária passa por uma educação cidadã que defina com clareza o papel da polícia e o direito de cada pessoa à proteção. “Quando a polícia salva vidas, não é heroísmo, é um bom trabalho de um servidor”, disse. “Quando a polícia mata, tem que ser condenada.” A entrevistada criticou a normalização de abordagens violentas nas periferias e a cumplicidade de parte da opinião pública com discursos que desumanizam jovens negros e pobres.
O comentarista Antônio Ibiapino sublinhou a dimensão pedagógica dessa luta, defendendo que policiais que honram a lei merecem reconhecimento, enquanto agentes que agem como criminosos devem ser expulsos e punidos com rigor. Para ele, a voz das mães tem função histórica, pois ajuda a reconstituir o sentido do Estado de Direito.
Memória, justiça e não repetição
A entrevista aponta três eixos que se cruzam no caso Curió: memória do crime, responsabilização efetiva e políticas de não repetição. A memória resiste para que as vítimas não sejam esquecidas e suas histórias não sejam distorcidas. A responsabilização exige investigações técnicas, provas sólidas e sentenças que inibam novos crimes. A não repetição demanda mudança cultural nas instituições e na sociedade, inclusive no modo como se fala e se pensa o papel da segurança pública.
Ao final, Edna explicou por que processar o Estado é parte desse caminho. Não se trata de “pagamento” por vidas que não se vendem, mas de reparação e reconhecimento da culpa institucional, com impacto concreto nas famílias. “Nós fizemos justiça”, disse. “Os nossos jovens precisam viver. A única opção não pode ser o caixão.”
A Chacina do Curió completa mais um ano como ferida aberta e ponto de virada. No Ceará e no Brasil, o julgamento de seus responsáveis é mais do que acerto de contas com o passado. É a chance de afirmar um futuro em que o direito à vida nas periferias não dependa de sorte, mas de políticas públicas, controle institucional e compromisso social com a dignidade humana.
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