Da Redação
Acordo firmado no Egito e apoiado por EUA, Catar e Egito prevê libertação de reféns, troca de prisioneiros, aumento maciço de ajuda e retirada militar parcial; trégua entra em vigor após ratificação do governo israelense.
Nesta quinta-feira, 9 de outubro de 2025, Israel e Hamas assinaram a primeira fase de um acordo de cessar-fogo para Gaza, abrindo uma janela concreta para encerrar mais de dois anos de guerra. O entendimento foi costurado em negociações indiretas no Egito, com papel central de Washington e participação de mediadores do Catar e de Ancara. O texto prevê a suspensão gradativa das hostilidades, a libertação de todos os reféns remanescentes em Gaza mediante cronograma acelerado e uma ampla troca de prisioneiros palestinos sob custódia israelense. Também determina uma retirada militar parcial e reposicionamento de forças no enclave, além da entrada intensificada de ajuda humanitária para uma população deslocada e traumatizada por destruição em larga escala. A vigência prática do cessar-fogo está condicionada à ratificação formal pelo gabinete israelense, procedimento esperado para as próximas horas.
Pelo desenho operacional, a trégua começa quando o governo de Israel homologar o pacote. Em até 72 horas, na fase inicial, está programada a libertação escalonada dos reféns, enquanto Israel coloca em marcha uma anistia abrangendo por volta de dois mil prisioneiros palestinos, inclusive um contingente com sentenças elevadas. Como contrapartida, o Hamas se compromete a entregar todos os sequestrados ainda vivos e a cooperar em mecanismos de verificação. Trata-se do ponto mais sensível do arranjo, pois estabiliza a dimensão humana que manteve a crise em combustão permanente e cria incentivo político para sustentar a trégua. Em paralelo, comboios de alimentos, água, combustíveis e insumos médicos passam a ingressar em número significativamente maior, sob monitoramento internacional, com prioridade para abrigos superlotados e hospitais em colapso.
O acordo nasce de uma convergência rara entre pressões externas e cálculos internos de custo político. No lado israelense, a insistência de alas da coalizão governista em prosseguir com uma estratégia de força máxima colidiu com a exaustão social, a erosão da economia e o peso dos reféns na opinião pública. No lado do Hamas, o desgaste militar e o isolamento crescente diante de atores árabes e muçulmanos minaram a capacidade de sustentar combates prolongados sem abrir canais de negociação. Mediadores egípcios e cataris mantiveram a arquitetura de conversas indiretas, preservando arestas domésticas de cada parte e fornecendo garantias de implementação, enquanto Washington buscou vender o entendimento como a primeira etapa de um plano mais amplo de estabilização.
A letra do acordo é clara ao separar uma “primeira fase” de medidas imediatas de segurança e humanitárias das discussões estruturais, que incluem o futuro arranjo de governança em Gaza, a desmilitarização e o regime de fronteiras. Esses dossiês permanecem em aberto e dependerão de fóruns subsequentes com participação de atores palestinos além do Hamas, bem como de garantias internacionais para reconstrução e financiamento. É uma arquitetura de paz por etapas, ancorada na troca de prisioneiros e no alívio humanitário como motores de confiança, mas que não resolve de imediato as disputas de soberania e segurança de fundo.
O terreno político continua irregular. Ministros da direita radical em Israel sinalizaram resistência a libertações de condenados e a qualquer gesto percebido como concessão. O governo, no entanto, trabalha com maioria suficiente para aprovar a trégua sem colapsar a coalizão. No campo palestino, a comunicação do Hamas tenta equilibrar a mensagem interna de sacrifício e “resistência” com a narrativa de que a troca de prisioneiros e a retirada parcial configuram vitórias concretas. Essa dupla coreografia é típica de cessar-fogos em guerras prolongadas e tende a produzir disputas de interpretação, especialmente quando cronogramas são comprimidos e há incidentes de última hora na linha de contato.
Enquanto persiste a espera pela ratificação, ocorrem relatos de episódios de fogo pontual e tensões em áreas onde deslocados tentam se movimentar. Esse tipo de fricção de transição, infelizmente recorrente, envolve risco real de escalada local antes que os mecanismos de monitoramento do acordo estejam plenamente ativos. Por isso, o passo operacional mais crítico nas próximas 24 a 72 horas será a instalação de canais de coordenação de segurança e de verificação humanitária, capazes de responder rapidamente a violações, ajustar rotas de comboios e isolar sabotagens.
Do ponto de vista humanitário, a ampliação do corredor de ajuda representa alívio imediato e mensurável. A normalização do abastecimento, porém, exigirá estabilidade mínima para recompor redes de água e energia, destravando a cadeia de frio de medicamentos, a produção local de pão e o funcionamento de hospitais. A literatura de pós-conflito mostra que cessar-fogo que melhora a vida cotidiana logo nos primeiros dias tende a gerar dividendos políticos, aumentando o custo de uma quebra unilateral. A engenharia desse acordo busca exatamente esse efeito: libertar reféns, reunir famílias, encher prateleiras e reduzir filas de combustível, produzindo fatos sociais que consolidem a paz parcial.
A comunidade internacional reagiu com rapidez e em tom favorável, com chancelerias de diferentes alinhamentos ideológicos vendo na trégua uma oportunidade tangível de contenção regional e de retomada da agenda de dois Estados. Nas capitales árabes, o Egito aparece reforçado como pivô de mediação fronteiriça, o Catar preserva seu capital diplomático junto às facções palestinas e Ancara se reposiciona como patrocinadora de uma saída negociada. Em organismos multilaterais, a ênfase recaiu no acesso seguro da ajuda e na exigência de que a trégua evolua para acordo estável, com parâmetros de reconstrução e garantias de não retorno às hostilidades.
Os números do custo humano são um lembrete contundente do que está em jogo. Após dois anos de campanha militar e colapso social, a sociedade civil vive um cenário de ruína material, luto e dispersão. É precisamente por isso que a execução disciplinada desta primeira fase, com foco em gente e infraestrutura básica, é politicamente decisiva. Mesmo que persistam lacunas sobre governança futura e desarmamento, entregar resultados imediatos cria lastro para as fases seguintes e dificulta a retomada da guerra como política.
Há riscos reais. Sabotagens de atores spoilers, disputas faccionais, incidentes graves na fronteira e divergências sobre listas de libertação podem pressionar o cronograma. A forma de mitigá-los é nitidamente operacional: regras de engajamento claras para as partes, comitês técnicos de gestão de incidentes, co-patrocínio dos mediadores nos pontos de atrito e comunicação pública transparente sobre o cumprimento das etapas. Se essas engrenagens funcionarem, a primeira fase tem chance de converter uma trégua frágil em processo político.
O dia 9 de outubro de 2025, portanto, marca uma inflexão. O cessar-fogo assinado cria, pela primeira vez em meses, uma ponte concreta entre a urgência humanitária e um horizonte de arranjo político. Se a ratificação ocorrer como previsto e as libertações começarem no prazo, famílias serão reunidas, prateleiras voltarão a se encher e o ciclo de violência poderá, enfim, perder tração. A diplomacia cumpriu seu papel ao abrir a porta. Agora, a prova é de execução.