Da Redação
Relatório da PF descreve uma engrenagem político-religiosa-comunicacional para “salvar” Jair Bolsonaro: rascunho de pedido de asilo à Argentina, lobby internacional conduzido por Eduardo Bolsonaro, aconselhamento e mobilização de Silas Malafaia, e uma estratégia digital destinada a constranger o Supremo — com desdobramentos jurídicos, diplomáticos e econômicos sem precedentes.
As mensagens e áudios recuperados pela Polícia Federal em celulares de Jair Bolsonaro e de interlocutores próximos compõem o mapa mais abrangente já visto da operação para “salvar” o ex-presidente de suas encrencas judiciais. O mosaico tem quatro eixos: (1) uma rota de fuga ensaiada por um pedido de asilo político à Argentina; (2) a construção de um canal de pressão externa mediado por articulações de Eduardo Bolsonaro nos Estados Unidos; (3) a engenharia de comunicação e mobilização com protagonismo de lideranças religiosas, notadamente o pastor Silas Malafaia; e (4) um roteiro jurídico de obstrução alinhado à guerra de narrativas nas redes.
O rascunho de asilo e o “plano B”
O núcleo mais explosivo do relatório é o rascunho de 33 páginas de um pedido de asilo político a ser dirigido ao presidente argentino Javier Milei, salvo no celular de Jair Bolsonaro desde fevereiro de 2024. O documento, que apresenta alegações de perseguição política e risco de prisão, é tratado pelos investigadores como plano B para escapar às medidas cautelares, reforçando a percepção de risco concreto de fuga. Paralelamente, conversas e áudios mostram debates sobre timing, viabilidade diplomática e argumentos a usar caso a rota tivesse de ser acionada. Em despacho recente, o Supremo fixou prazo de 48 horas para a defesa de Bolsonaro esclarecer o conteúdo e a finalidade do arquivo.
O “braço externo”: Eduardo Bolsonaro e a pressão sobre Washington
As mensagens mostram Eduardo Bolsonaro como vértice do braço internacional da operação: deixa temporária do mandato e mudança para os EUA, contatos com figuras do entorno de Donald Trump e reuniões com autoridades econômicas norte-americanas para estimular sanções e endurecer o clima contra autoridades brasileiras. O objetivo, segundo os investigadores, era converter capital político externo em alavanca interna, pressionando o Supremo Tribunal Federal e influenciando o ambiente de opinião. Trechos de conversas indicam ansiedade com o relógio político americano, receio de “perder tração” e a necessidade de manter o tema no radar de Washington para que a pauta “não passasse para a próxima”.
A engrenagem religiosa-comunicacional: o papel de Silas Malafaia
No front doméstico, Silas Malafaia surge como consultor midiático e mobilizador de base, orientando conteúdos, tom e frequência de publicações para constranger ministros do Supremo e deflagrar ciclos de indignação organizada. Os investigadores descrevem áudios duros, inclusive com críticas ao desempenho de aliados, que funcionavam como “puxões de orelha” e correção de rota tática. A PF executou busca pessoal no Galeão, apreendeu celulares e impôs medidas cautelares a Malafaia (proibição de contato com investigados e de sair do país). Para a Polícia Federal, a ponte religiosa-comunicacional era essencial para transformar orientações de bastidores em ondas virais, multiplicando o alcance do núcleo político.
O duto das redes e a consultoria de “compliance” da narrativa
Os peritos identificaram documentos e rascunhos de postagens submetidos a revisão de assessores jurídicos e de mídia ligados ao ecossistema político americano. Em um caso, Bolsonaro teria solicitado a revisão de um texto elogioso a Trump a um advogado estrangeiro, sinal de que a forma e a linguagem dos conteúdos eram calibradas para objetivos específicos: agradar aliados externos, criar antagonistas claros no Brasil e alimentar teses de perseguição. O desenho era simples: roteiro narrativo (com palavras-chave, inimigos, heróis e “provas” de injustiça), ciclo de publicações (combinando perfis de grande alcance e contas satélites) e efeito dominó (reverberação em rádio, TV e redes religiosas).
O tabuleiro jurídico: obstrução e coação no curso do processo
Do ponto de vista legal, a PF junta peças para sustentar obstrução de Justiça e coação. A existência do rascunho de asilo, os movimentos de bastidores destinados a pressionar ministros, a tentativa de burlar restrições e a coordenação de ataques digitais compõem um padrão de conduta reiterado. A leitura é que a estratégia confunde liberdade de expressão com ataque institucional, tentando paralisar o processo judicial por intimidação pública, “provas” forjadas em posts e suspeições plantadas. O caso tramita no Supremo, que já impôs prisão domiciliar ao ex-presidente por descumprimento de ordens anteriores.
Diplomacia de atrito: tarifas, sanções e eco político
As mensagens recuperadas são o pano de fundo de uma diplomacia que saiu do eixo. Em paralelo às conversas internas, ganharam fôlego nos EUA iniciativas que agravaram o clima bilateral: tarifa de 50% sobre exportações brasileiras e sanções sob a Lei Magnitsky contra autoridade do Supremo. A PF e analistas veem sincronia política: lobby transnacional para pressionar instituições brasileiras, uso de medidas econômicas como arma e tentativa de importar o contencioso para o tabuleiro americano. Para Brasília, a mensagem é ingerência inaceitável; para o mercado, volatilidade e risco jurídico para bancos e empresas expostas ao sistema financeiro internacional.
Mercado e sistema financeiro no fogo cruzado
O sistema bancário tornou-se campo de batalha. De um lado, sanções estrangeiras com potencial de bloqueio de ativos e restrições em moedas fortes; do outro, ordens do Supremo afirmando que nenhuma penalidade estrangeira pode ser aplicada no Brasil sem chancela judicial doméstica. As mensagens ilustram como a tática de cerco político pretendia transferir conflitos para compliance de bancos e corporações, criando pontos de ruptura que escalassem a crise. O resultado prático foi aversão a risco, queda de papéis do setor financeiro e judicializações à vista para dirimir colisões entre jurisdições.
Linha do tempo e próximos passos
Com as provas digitais recolhidas e o roteiro de asilo identificado, o inquérito entra em fase de consolidação de materialidade. O Supremo demandou respostas imediatas da defesa; a Procuradoria avalia denúncias formais por obstrução e coação; e o calendário indica julgamentos sensíveis nas próximas semanas. Na arena externa, a chancelaria tenta desarmar o conflito sem ceder em princípios de soberania. No plano político, a revelação das mensagens altera a percepção pública sobre organização e alcance da operação para “salvar” o ex-presidente, enquanto aliados calculam custo de reputação e riscos penais.
O que as mensagens, juntas, ensinam
O conjunto evidencia uma estratégia integrada: plano de escape, pressão internacional, mobilização religiosa-digital e narrativa jurídica combinadas para paralisar a Justiça e reconfigurar o tabuleiro pela via do embaraço institucional. Para investigadores, o elemento novo não é a existência de apoio político — comum em democracias —, mas a tentativa deliberada de instrumentalizar poderes estrangeiros e mídias digitais para subverter o devido processo legal. A partir de agora, a pergunta decisiva é se e como o sistema de freios e contrapesos brasileiro disciplinará essa tática, preservando soberania, legalidade e previsibilidade econômica.