Professores analisam a lógica da uberização e apontam nas plataformas solidárias um caminho possível para a reconstrução do trabalho e da soberania digital
Na edição de 3 de novembro do programa Bancos da Democracia, da TV Atitude Popular, o debate girou em torno do tema “Uberização versus Plataformas Solidárias”, um dos pontos centrais das novas formas de exploração do trabalho mediadas por aplicativos. O programa contou com a participação de dois pesquisadores que têm se dedicado ao tema: o psicólogo social Egeu Esteves, professor da Unifesp e coordenador da Universidade Aberta à Economia Solidária, e o também psicólogo e professor Marlon Campos, da UFPel, coordenador do projeto Trampo no APP.
Do trabalhador “empreendedor” ao trabalhador exaurido
O sistema capitalista, lembraram os convidados, tem uma capacidade ímpar de se reinventar, e a uberização é sua forma mais recente de metamorfose. A ilusão do trabalhador como “empreendedor” encobre uma nova e profunda subordinação: ele cede sua força de trabalho e seus bens pessoais, como o carro ou a moto, sem qualquer garantia trabalhista, enquanto o verdadeiro empregador, a plataforma, se esconde atrás de algoritmos.
“O problema não é a plataforma, é o capitalismo usando a plataforma para extrair valor e intensificar a exploração”, resumiu Egeu Esteves.
“Quando os trabalhadores são donos da plataforma, ela deixa de ser um instrumento de exploração e passa a fazer parte de uma economia dos trabalhadores”, completou.
Segundo Marlon Campos, é preciso compreender que o fenômeno da plataformização não se limita à Uber. “Ela atravessa o trabalho em diferentes áreas, da advocacia à psicologia. Só que a lógica é a mesma: mais horas, menos direitos e mais invisibilidade.”
Ele destacou o perigo do “apagamento do chefe”, um dos traços marcantes da gestão algorítmica. “O trabalhador não sabe mais a quem dirigir suas reivindicações. A plataforma vira uma entidade mítica, sem rosto, sem responsabilidade.”
O mito do “seja seu próprio chefe”
A ideologia vendida por empresas como a Uber, “seja seu próprio chefe”, mascara uma relação de subordinação real. Os algoritmos definem preços, rotas, horários e até a suspensão do motorista. “O trabalhador acredita que é livre, mas trabalha 12, 14 horas por dia para compensar o rebaixamento das tarifas”, disse Marlon.
O resultado é uma massa de trabalhadores sem tempo, sem saúde e sem voz política. A precarização, que já era estrutural no Brasil, aprofunda-se com a chegada das plataformas. “Aqui nunca houve um Estado de bem-estar social como na Europa. O que se vê é a superexploração tornada regra”, acrescentou o pesquisador.
Do ludismo às cooperativas digitais
Para Egeu, há um erro recorrente em culpar a tecnologia. “A questão não é o aplicativo, assim como no século XIX não era a máquina o problema, era o uso capitalista da máquina. Hoje, a tecnologia poderia ser usada para o contrário: organizar o trabalho de forma coletiva, solidária e justa.”
Ele citou o exemplo da Cooperativa Livres, que reúne produtores agroecológicos, consumidores e entregadores, todos como sócios, operando em rede digital e física.
“É uma plataforma integral, com transparência e controle coletivo. O consumidor sabe de quem compra, o trabalhador é coproprietário e a renda fica na comunidade.”
Outras experiências citadas foram as Senhoritas Courier e a Giro Sustentável, ambas cooperativas de entregas por bicicleta criadas por mulheres e pessoas trans. “Elas mostram que há alternativas concretas, mesmo sem o poder financeiro das big techs”, observou o professor.
Plataformas solidárias e o desafio da escala
Mas se há experiências inspiradoras, por que ainda não ganharam a escala de gigantes como iFood ou Amazon? Egeu foi direto: “Porque falta política pública, investimento e marco legal. A economia solidária não tem sequer um tipo jurídico próprio. Ou é associação, que não serve, ou é cooperativa, que é cara e complexa. O Brasil ainda não reconheceu o empreendimento de economia solidária.”
Ele lembrou que, enquanto isso, o Estado frequentemente regula “por baixo”, precarizando ainda mais o trabalho.
“O maior golpe que a economia solidária sofreu foi o MEI. O microempreendedor individual destruiu a perspectiva de organização coletiva. E agora querem repetir o erro criando o ‘autônomo vinculado à plataforma’, um autônomo subordinado, o fim do direito trabalhista.”
Entre o lucro e o algoritmo: o custo humano e ambiental da digitalização
O debate abordou também o lado invisível das plataformas digitais: o impacto ambiental e energético da chamada economia de dados. Por trás de cada aplicativo há um custo físico enorme, envolvendo data centers, mineração, gasto de energia e de água.
Egeu lembrou o alerta de Davidson Faustino e Walter Lippold no livro Colonialismo Digital.
“Não existe software sem hardware. A exploração agora é dupla, dos trabalhadores e do meio ambiente. O Sul global fornece minério, energia e dados, enquanto o Norte global controla o processamento e o lucro.”
Ele advertiu para o risco do colonialismo de dados, já que as principais informações estratégicas do país, de bancos, saúde e segurança, estão hospedadas em servidores da Amazon, Google, Microsoft e Meta.
“Instalar um data center da Amazon no Brasil não é soberania digital. É só transferir o dano ambiental para cá. A soberania informacional precisa de infraestrutura pública e controle social dos dados.”
O futuro nas mãos dos trabalhadores
Ao final do programa, ficou clara a convergência entre os convidados: a plataforma solidária é mais que um projeto econômico, é uma estratégia política e pedagógica.
“A gente precisa disputar a tecnologia. Ela não é neutra, mas pode ser popular”, disse Egeu.
“A luta de classes continua, só mudou de interface”, completou Marlon.
A conclusão foi direta: a economia solidária segue sendo a prova viva de que é possível reconstruir o trabalho a partir da dignidade e de que a tecnologia, nas mãos dos trabalhadores, pode ser instrumento de emancipação e não de exploração.
📺 Programa Bancos da Democracia
📅 De segunda à sexta
🕙 Das 8h30 às 9h30
📺 Ao vivo em: https://www.youtube.com/TVAtitudePopular
💚 Apoie a comunicação popular!
📲 Pix: 33.829.340/0001-89




