Atitude Popular

“Nós vivemos uma epidemia de violência armada”

Dez anos após a Chacina do Curió, Thiago Holanda detalha julgamentos, avanços institucionais e a luta das mães por justiça e memória

A dez anos da Chacina do Curió, famílias ainda atravessam audiências longas, recursos e absolvições, mas também erguem redes de cuidado, memória e direitos. Em entrevista ao programa Democracia no Ar, da Rádio e TV Atitude Popular, o sociólogo Thiago Holanda descreveu o que mudou desde a madrugada de 11 para 12 de novembro de 2015, quando 11 pessoas foram executadas e outras sete ficaram feridas na Grande Messejana, em Fortaleza. A conversa, apresentada por Sara Goes e com comentários da professora de filosofia Sandra Helena, foi ao ar com transmissão pela Rede Cearense de Comunicação Popular e repercute as decisões mais recentes do Tribunal do Júri.

Coordenador técnico do Comitê de Prevenção e Combate à Violência da Assembleia Legislativa do Ceará e coordenador do Programa de Atenção Integral às Vítimas de Violência da Defensoria Pública do Estado do Ceará, a Rede Acolhe, Thiago Holanda reconstruiu a linha do tempo dos julgamentos, apontou avanços institucionais na atenção às vítimas e alertou para o risco de naturalização da impunidade. “Nós vivemos uma epidemia de violência armada”, afirmou, ao defender que a experiência cearense se desdobre em política pública nacional

O caso e a noite que não termina

A sequência de homicídios ocorreu horas depois do assassinato de um policial militar de folga, morto ao reagir a um assalto. Segundo Holanda, formou-se então uma operação de vingança, sem autorização legal, que cercou bairros da região. “Eles fecharam basicamente o bairro todo, as saídas e as entradas”, relatou. Um dos episódios mais brutais aconteceu diante de uma igreja, onde quatro adolescentes usavam o wi-fi para jogar no celular. “Os policiais simplesmente chegaram, colocaram todos eles na parede e atiraram”, disse. Um jovem sobreviveu após levar oito dos doze disparos

A reação da sociedade veio no dia seguinte, mas as vítimas e seus familiares enfrentaram um segundo massacre, o simbólico, alimentado por manchetes que insinuavam culpa das vítimas e discursos que relativizavam execuções sumárias. Foi nesse ambiente que surgiram as Mães do Curió. “Elas transformaram o luto delas em luta”, resumiu Holanda

Julgamentos, absolvições e condenações

Holanda apresentou um balanço objetivo das sessões do júri, divididas por núcleos de acusação
• 21 de junho de 2023, primeiro julgamento, quatro policiais de folga condenados por homicídios, tentativas de homicídio e tortura, com penas somadas que ultrapassam dois séculos
• 29 de agosto de 2023, segundo julgamento, oito policiais em serviço absolvidos pelo júri
• setembro de 2023, terceiro julgamento, dois condenados e seis absolvidos entre policiais da reserva e outros agentes
• 25 a 31 de agosto de 2025, quarto julgamento, sete réus do chamado núcleo da omissão novamente absolvidos, com anúncio imediato de recurso pelo Ministério Público

“Respeitamos a decisão do júri, mas o Ministério Público vai recorrer”, afirmou Holanda, ressaltando que os autos apontam que viaturas passaram repetidas vezes pelos locais das execuções, sem acionar socorro nem interromper a matança. Ele informou ainda que o próximo júri começa em 22 de setembro, com três réus, entre eles um acusado de articular as ações daquela noite

Do trauma à política de Estado

A entrevista mostrou como o enfrentamento à violência se converteu em desenho de políticas públicas. A Defensoria Pública criou, em 2017, a Rede Acolhe para assistência jurídica e psicossocial a vítimas de violência armada, com atuação como assistente de acusação ao lado do Ministério Público. A Assembleia Legislativa instituiu, ao fim de 2015, o Comitê de Prevenção e Combate à Violência, que mapeou 16 serviços de atendimento a vítimas no Ceará desde 2016, articulando acolhimento, saúde mental e proteção

Holanda relatou um episódio definidor na reparação imaterial: inicialmente oferecido um atendimento ambulatorial num hospital psiquiátrico, as Mães do Curió rejeitaram a proposta, que interpretaram como estigmatizante, e pactuaram com a Secretaria de Saúde um cuidado comunitário em parceria com o Movimento de Saúde Mental do Bom Jardim. “O Estado não pode matar meu filho e depois me oferecer sedação, ele tem de garantir cuidado e justiça”, ecoou nas reuniões com o governo, segundo Holanda. Em paralelo, defensoria, Cedeca, Ministério Público, Tribunal de Justiça e o programa Crave, da Secretaria de Direitos Humanos, montaram uma retaguarda para acompanhar audiências, oferecer suporte psicológico e garantir informação às famílias durante os júris

Nacionalizar o aprendizado

O comitê firmou acordo de cooperação com o Ministério dos Direitos Humanos para transformar o método cearense de cuidado em rede numa política nacional. “Temos tudo na mão para fazer uma política incrível, precisamos de liderança e velocidade”, disse Holanda. A parceria envolve a Agência da ONU para Drogas e Crime e prevê estudo nacional sobre atenção a vítimas e protocolos para júris de casos de violência de Estado. Observadores do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Anistia Internacional e representantes do governo federal acompanharam sessões do júri em Fortaleza

A professora Sandra Helena, convidada do programa, sublinhou a dimensão ética do movimento das mães e a necessidade de diretrizes federais para reduzir a letalidade policial e enfrentar a violência nas periferias. Holanda concordou com a avaliação e anunciou que o comitê, em parceria com a Defensoria, o Ministério Público e organizações da sociedade civil, vai publicar em 2026 um relatório consolidando lições aprendidas nos julgamentos do Curió, para que sirvam de referência a outros casos

Memória, justiça e o que vem pela frente

A mobilização das famílias já resultou em pedido de desculpas do governo estadual, indenização, atendimento psicossocial e memorialização das vítimas, mas o núcleo central da demanda permanece. “Não podemos deixar que a impunidade continue a tecer a nossa segurança pública”, afirmou Holanda. Ele convidou a população a acompanhar a agenda do comitê e o trabalho de atenção às vítimas. “Cada vida importa”, reforçou, ao lembrar que a violência armada se expandiu no país ao longo da década e exige respostas coordenadas, com prevenção, controle de letalidade e reparação

A entrevista encerrou com um chamado direto às audiências fora do Ceará: entender a Chacina do Curió é entender como uma democracia lida com seus fantasmas, como transforma dor em política e como mães, organizadas, podem mudar o curso de processos que insistem em negar a humanidade de seus filhos. O próximo júri será mais um capítulo dessa disputa por verdade e justiça


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