A execução do ex-delegado em São Paulo expõe a conivência entre facção e Estado, a fascistização da PM e abre espaço para os EUA enquadrarem o Brasil como “narco-terrorista”.
Por Reynaldo Aragon
O assassinato atribuído ao PCC em São Paulo escancara a falência da segurança pública sob Tarcísio de Freitas, os vínculos perigosos entre facção e mercado financeiro e a letalidade seletiva da PM paulista. Em meio à escalada norte-americana contra a América Latina sob o rótulo de “narcoterrorismo”, manter o caso apenas nas mãos do governo estadual é abrir caminho para a manipulação externa. O governo Lula precisa federalizar a investigação pela Polícia Federal para proteger a soberania brasileira.
Introdução — O sinal que atravessa fronteiras
O assassinato do ex-delegado-geral Ruy Ferraz Fontes, executado em plena luz do dia no litoral paulista, não é apenas um crime de alto impacto na crônica policial brasileira. Ele funciona como um apito de cachorro: um sinal que ressoa além das fronteiras nacionais e pode ser manipulado por atores políticos, midiáticos e estratégicos para construir narrativas que transcendem a realidade do fato. No plano interno, o episódio já expõe a falência da segurança pública de São Paulo sob a gestão Tarcísio de Freitas, marcada pela fascistização de segmentos da Polícia Militar e pela inépcia em lidar com o crime organizado. No plano externo, a execução é combustível perfeito para a doutrina trumpista de “narcoterrorismo”, que avança na América Latina como justificativa para medidas punitivas, sanções financeiras e operações militares.
Ao mirar um inimigo histórico do PCC, a facção não apenas reafirma sua capacidade de atacar símbolos do Estado, mas também entrega, de bandeja, uma narrativa pronta para aqueles que querem enquadrar o Brasil como Estado conivente com o narcotráfico. Esse enquadramento, que já começou a ser aplicado contra a Colômbia e a Venezuela, é o próximo passo de uma estratégia de cerco contra democracias que ousam desafiar os interesses norte-americanos. O risco é evidente: se as investigações permanecerem sob controle de um governo estadual politicamente alinhado à extrema-direita e fragilizado em sua credibilidade, o episódio pode ser usado como prova narrativa de que o Brasil falha no combate ao crime organizado.
Por isso, a federalização do caso não é apenas uma questão de técnica investigativa. É uma medida de soberania nacional, capaz de blindar o país contra manipulações externas e internas. A presença da Polícia Federal garantiria rigor forense, transparência internacional e um sinal inequívoco de que o Brasil não aceitará ser arrastado para o rótulo de “narco-Estado” fabricado em Washington. O que está em jogo vai muito além da justiça por uma execução brutal: é a disputa pela legitimidade do Brasil no tabuleiro global da guerra híbrida.
A falência da segurança pública paulista
São Paulo ostenta o discurso de “polícia mais preparada do país”, mas os números e os fatos revelam uma realidade oposta: a segurança pública paulista tornou-se um laboratório de violência de Estado, onde a letalidade policial cresce em proporções alarmantes e mecanismos de controle foram sistematicamente corroídos. Em 2024, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a PM paulista registrou o maior salto proporcional de mortes em ações policiais no Brasil. São centenas de vidas ceifadas, em sua esmagadora maioria de jovens negros e periféricos, sem que a redução da criminalidade acompanhe esse índice. A matemática é cruel: mata-se mais, mas não se controla o crime.
A Operação Escudo, deflagrada na Baixada Santista em 2023 e desdobrada ao longo de 2024 e 2025, é símbolo desse colapso. Foram mais de oitenta mortos em um ano, denúncias consistentes de execuções sumárias, adulteração de cenas de crime e desligamento proposital de câmeras corporais — provas recolhidas por relatórios da Conectas, da Human Rights Watch e da Ouvidoria das Polícias. O que deveria ser política pública de segurança converteu-se em ação de guerra contra a própria população, legitimada por um governo estadual que não apenas tolera, mas incentiva a lógica do “atirar primeiro, perguntar depois”. Trata-se da normalização de uma cultura policial fundamentalizada e fascistizada, que enxerga inimigos internos em cidadãos pobres e transforma territórios em zonas de exceção.
Essa política de extermínio, travestida de “combate ao crime”, gera um efeito duplo e devastador. Por um lado, destrói qualquer perspectiva de relação de confiança entre comunidade e Estado — a população periférica vê a polícia mais como força de ocupação do que como proteção. Por outro, alimenta a simbiose com o PCC, que cresce justamente sobre os escombros deixados pela repressão cega. Onde o Estado chega apenas com fuzil e cassetete, a facção organiza crédito, assistência e regulação social. A falência não é apenas operacional, mas política: a segurança pública paulista já não serve à cidadania, mas a uma lógica de poder que combina brutalidade policial com tolerância à infiltração do crime organizado em suas próprias fileiras.
Deixar investigações sensíveis, como o assassinato de Ruy Ferraz Fontes, nas mãos dessa estrutura estadual é mais que um erro técnico. É um risco estratégico para a soberania nacional. O governo de Tarcísio de Freitas não demonstra nem vontade política nem condições institucionais de conduzir uma apuração isenta. Ao contrário: ao sustentar uma política de espetáculo e morte, reforça a percepção externa de que São Paulo — e por extensão o Brasil — é incapaz de controlar suas próprias forças de segurança e suas próprias facções. Essa falência é o espaço ideal para a doutrina norte-americana do “narcoterrorismo” encontrar terreno fértil e justificar interferências ainda mais agressivas.
Conivência, corrupção e captura pelo PCC
O mito da polícia paulista como bastião contra o crime cai por terra quando olhamos para os episódios recentes que revelam cooptação estrutural de agentes pelo próprio inimigo que deveriam combater. Não se trata de casos isolados, mas de um padrão de infiltração e corrupção que compromete a credibilidade das forças de segurança e expõe o Brasil a riscos internos e externos.
O caso mais emblemático foi a execução de um empresário delator no Aeroporto de Guarulhos, em 2024, episódio que desmontou uma rede de proteção ligada ao PCC e resultou em denúncias contra mais de duas dezenas de policiais civis e militares. O que emergiu das investigações foi um esquema profundo de extorsão, facilitação e vazamento de informações, onde policiais atuavam como “braço de Estado” para blindar e monetizar interesses da facção. Este não foi um acidente, mas a revelação de como o crime organizado e parte do aparato policial se confundem.
A Operação Escudo também se insere nesse cenário. Ao mesmo tempo em que projetou a PM paulista como força letal, multiplicaram-se denúncias de que a mesma operação serviu para encobrir acertos de contas internos e beneficiar faccionados específicos, desmontando a fronteira entre política de segurança e “contratos” paralelos com o crime. Há provas materiais — de balística a necropsias — indicando execuções forjadas e manipulação de cenas. A polícia que mata sem freios também é a polícia que negocia a vida e a morte segundo interesses que muitas vezes convergem com os do PCC.
Esse quadro se completa quando olhamos para a captura financeira. A Operação Carbono Oculto, deflagrada em agosto de 2025, expôs o PCC como uma organização empresarial e financeira de alta sofisticação, que movimentou cerca de R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024 através de postos de combustíveis, fintechs e fundos de investimento. Não se trata de lavagem marginal: investigações apontam que até R$ 30 bilhões passaram por fundos ligados ao coração da Faria Lima, com gestoras, intermediários e operadores de mercado funcionando como blindagem de capital da facção. O PCC não opera apenas nos becos, mas nos escritórios envidraçados do sistema financeiro.
Quando o crime se entranha na polícia e no mercado financeiro, a governança estatal perde sua capacidade de controle. O aparato repressivo se torna seletivo: violento contra pobres, complacente contra aliados e funcional para o capital do crime. Essa simbiose perversa explica a resiliência do PCC e sua capacidade de sobreviver a ciclos de repressão: porque sua rede não é apenas criminosa, é institucional. A polícia que executa na periferia é a mesma que negocia com lideranças da facção; os fundos que financiam a elite econômica são os mesmos que lavam bilhões da economia paralela.
Esse é o ponto de maior risco estratégico: se o Brasil não consegue demonstrar que tem controle sobre suas polícias e sobre o fluxo financeiro do crime organizado, o caminho fica aberto para que Washington enquadre o país como “narco-Estado complacente”. A corrupção policial e a blindagem financeira na Faria Lima tornam-se, assim, não apenas um problema doméstico, mas um ativo narrativo externo. É essa conivência que precisa ser desarmada pela investigação federal, antes que seja usada como munição para a doutrina norte-americana do “narcoterrorismo”.
A Faria Lima como bunker do PCC
A verdadeira força do PCC não está apenas em seus soldados nas periferias ou nos presídios. Ela se revela no coração financeiro de São Paulo, na Faria Lima, onde a facção aprendeu a operar como uma holding criminosa, blindada por estruturas do próprio mercado. A Operação Carbono Oculto foi apenas a ponta visível de um iceberg: ao expor uma rede que movimentou R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024, o Ministério Público e a Receita Federal mostraram que a facção não é apenas uma gangue armada, mas um ator financeiro com capacidade de capturar mecanismos do capitalismo formal.
O esquema funcionava em várias camadas. Na base, postos de combustíveis em dez estados serviam como lavanderias do dinheiro ilícito. Esse capital era, em seguida, alavancado por fintechs e cooperativas paralelas, operando como bancos não oficiais do crime. O ponto mais sensível, porém, foi a entrada de mais de R$ 30 bilhões em fundos de investimento administrados a partir da Faria Lima. Gestoras e operadores de mercado criaram um escudo de legitimidade para os recursos, diluindo-os em carteiras sofisticadas, com compliance de fachada e auditorias incapazes — ou desinteressadas — em rastrear a origem real do capital.
Esse processo expõe a simbiose entre crime e elite financeira: o dinheiro sujo do PCC se converte em ativos de alta liquidez e baixo risco, enquanto o mercado formal se beneficia da massa de capital injetada nas engrenagens do sistema. O resultado é a blindagem dupla: o PCC se fortalece como player econômico e, em contrapartida, o próprio mercado passa a ter interesse em manter zonas de complacência e silêncio. O crime organizado encontra, na Faria Lima, não apenas uma lavanderia, mas um bunker político e jurídico, protegido por advogados, gestores e operadores que ganham junto com ele.
Essa blindagem financeira também explica a resiliência do PCC diante das maiores ofensivas repressivas. Nenhuma operação policial, por mais letal que seja, consegue desarticular a estrutura de capital que sustenta a facção. O fuzil intimida nas quebradas, mas é o balanço contábil que garante sobrevivência e expansão. Quando o PCC passa a ser investidor dentro da ordem financeira oficial, ele se torna um ator que não pode ser eliminado apenas pela bala — e que, paradoxalmente, encontra respaldo na mesma elite econômica que se apresenta como defensora da “lei e da ordem”.
Esse quadro é estratégico para entender por que o Brasil está na mira da doutrina trumpista do “narcoterrorismo”. A partir de Washington, o discurso pode ser construído em duas frentes: internamente, explorando a violência policial paulista como evidência de um Estado fora de controle; externamente, apontando a blindagem financeira do PCC como sinal de captura institucional. O passo seguinte é óbvio: se o crime organizado está entranhado na polícia e no mercado financeiro, e o Estado não age de forma centralizada e soberana, o Brasil pode ser enquadrado como um narco-Estado complacente, alvo legítimo de sanções e pressões.
Na prática, a Faria Lima se torna um bunker do PCC não apenas porque abriga seu dinheiro, mas porque constrói uma zona cinzenta de impunidade onde a lógica do capital sobrepõe a lógica da lei. E enquanto essa simbiose não for quebrada, qualquer discurso de “combate ao crime” no Brasil será visto como uma encenação. É aqui que a federalização do caso Ruy Ferraz e a expansão da investigação financeira para além dos becos — chegando às salas de reunião e aos fundos milionários — se tornam não apenas uma questão de justiça, mas de soberania nacional.
O apito de cachorro: de SP a Washington
O assassinato de Ruy Ferraz Fontes não é apenas um ataque brutal contra um inimigo histórico do PCC, é um sinal carregado de significados políticos. Trata-se de um apito de cachorro, compreendido de imediato por quem deseja instrumentalizar a tragédia. Dentro do Brasil, a extrema-direita já utiliza o episódio para reforçar a narrativa de que “o Estado perdeu o controle”, pressionando por soluções autoritárias e pela ampliação da violência de Estado. Fora do país, em Washington, o caso cai como presente: em meio à doutrina trumpista de enquadrar a América Latina como território dominado pelo narcotráfico, a morte de um ex-chefe de polícia paulista fornece o enredo perfeito para associar o Brasil a um “narco-Estado complacente”.
O contexto internacional mostra o tamanho do risco. A Colômbia foi decertificada, a Venezuela sofreu ataques navais com uso de força letal e gangues como o Tren de Aragua foram classificadas como organizações terroristas estrangeiras. Cada movimento reforça a ideia de que a região não tem soberania sobre suas próprias fronteiras e precisa ser tutelada. O Brasil, até aqui, vinha escapando desse enquadramento direto. Mas a execução de Ruy Ferraz, sob um governo estadual marcado por inépcia e por sinais de fascistização de sua polícia, abre a brecha que faltava.
O episódio reúne todos os elementos que a retórica externa precisa: um símbolo forte (um delegado morto), um inimigo globalmente reconhecido (o PCC), um Estado local incapaz de responder (São Paulo) e uma narrativa facilmente exportável: “o Brasil não combate o narcotráfico”. O risco estratégico é que, se a investigação permanecer circunscrita a São Paulo, o episódio seja usado como prova narrativa para justificar pressões crescentes: sanções financeiras, controles sobre exportações, restrições de vistos e, no limite, presença militar intensificada no Atlântico Sul sob o pretexto de “combate ao narcoterrorismo”.
Assim, a morte de Ruy Ferraz transcende a crônica policial. É o ponto de interseção entre a violência urbana, a fragilidade institucional paulista e a ofensiva geopolítica da extrema-direita global. O apito de cachorro do PCC já ecoa em Washington e, se o Brasil não agir com inteligência estratégica, poderá ser transformado em peça-chave de um roteiro de estigmatização que ameaça diretamente a soberania nacional.
A ofensiva dos EUA na América Latina
A América Latina voltou a ser tratada por Washington como um teatro de guerra, não no sentido clássico, mas no campo híbrido em que narrativas, sanções, operações militares pontuais e classificações jurídicas se combinam para subjugar países que ousam afirmar soberania. A nova doutrina trumpista coloca a região inteira sob o rótulo de território dominado pelo narcotráfico e, portanto, passível de enquadramento como “narco-Estados”. É nesse contexto que a execução de Ruy Ferraz Fontes em São Paulo pode ser lida e utilizada, pois se soma a um padrão já em andamento contra vizinhos estratégicos.
A Colômbia foi o primeiro alvo. Em setembro de 2025, pela primeira vez em quase três décadas, os Estados Unidos declararam que Bogotá falhou de forma demonstrável em seus compromissos de combate às drogas. Embora um “waiver” tenha evitado sanções imediatas, a mensagem foi brutal: Petro é visto como líder de um país incapaz de controlar suas rotas de cocaína, e por isso será humilhado publicamente e mantido sob vigilância constante. Esse gesto é pedagógico, um aviso a toda a região de que cooperação e submissão são a condição para evitar maiores consequências.
Na sequência, a Venezuela foi alvo de força letal em alto-mar. Navios norte-americanos abriram fogo contra embarcações acusadas de transportar drogas, resultando em mortes que o governo Maduro qualificou como assassinato em águas internacionais. O Pentágono divulgou vídeos para sustentar sua versão, mas juristas e até senadores norte-americanos já questionam a legalidade das ações. Ainda assim, do ponto de vista estratégico, o recado está dado: Washington não hesitará em usar mísseis, drones e navios de guerra sob a capa de “combate ao narcotráfico”.
O terceiro passo foi jurídico e talvez o mais importante. Grupos como o Tren de Aragua, os Choneros e os Lobos passaram a ser classificados pelo Departamento de Estado como organizações terroristas estrangeiras. Essa manobra muda a chave do jogo: ao transformar crime organizado em terrorismo, os EUA expandem seu arsenal legal, podendo aplicar sanções financeiras globais, acionar leis extraterritoriais e até justificar intervenções militares sob a doutrina da autodefesa. O narcotráfico deixou de ser visto como problema policial e passou a ser tratado como ameaça terrorista global.
Colômbia, Venezuela e Equador já foram enquadrados nesse novo paradigma. O Brasil ainda não, mas está na beira do mesmo abismo. Tarifas, atrasos de vistos, ataques retóricos a ministros e até sanções individuais já mostram que o país entrou na linha de mira. Falta apenas um gatilho simbólico para sustentar o rótulo de que o Brasil “não combate o narcotráfico”. O assassinato de Ruy Ferraz Fontes pode cumprir essa função. Se a investigação for mal conduzida e se persistirem sinais de conivência entre Estado e facção, a extrema-direita norte-americana terá o argumento perfeito para incluir o Brasil no pacote da doutrina narcoterrorista.
O que se desenha é uma ofensiva ampla, coerente e crescente. Não se trata apenas de drogas, mas de controle geopolítico: enquadrar a região como zona de insegurança permanente para justificar sanções, limitar a autonomia de governos progressistas e manter os EUA como árbitro da soberania latino-americana. Nesse roteiro, cada país é uma peça, e o Brasil, pela sua centralidade econômica e política, é o troféu maior.
Cenários preditivos: riscos e ameaças à soberania
Se o assassinato de Ruy Ferraz Fontes for mal conduzido e o Brasil deixar a narrativa escapar para as mãos da extrema-direita interna e externa, abre-se um leque de cenários de alto risco para a soberania nacional. O primeiro é o da pressão discursiva internacional. Nesse estágio, o Brasil passaria a figurar em relatórios do Departamento de Estado como país “falho” no combate ao narcotráfico, seria incluído em listas anuais de maior trânsito de drogas e enfrentaria um bombardeio de declarações oficiais em Washington e Bruxelas. O objetivo seria corroer a legitimidade do país como parceiro confiável em segurança e comércio.
O segundo cenário é o da sanção seletiva. Aqui, os EUA poderiam adotar medidas específicas e calibradas: restrição de vistos para autoridades brasileiras, bloqueios financeiros a operadores suspeitos de lavar dinheiro para o PCC, fiscalização alfandegária mais dura sobre exportações brasileiras. A narrativa seria “técnica”, mas os efeitos seriam devastadores: aumento de custos logísticos, constrangimento diplomático e pressão psicológica sobre investidores internacionais.
O terceiro cenário é o da militarização indireta. Sob o pretexto de “combater o narcoterrorismo”, Washington poderia ampliar sua presença no Atlântico Sul, aumentar a vigilância sobre rotas marítimas brasileiras e pressionar por cooperação forçada em operações conjuntas. O Brasil veria sua soberania naval corroída de forma silenciosa, sem uma invasão formal, mas com perda concreta de autonomia sobre suas rotas estratégicas de exportação.
O quarto e mais perigoso cenário é o da convergência interna da extrema-direita com a retórica externa. Nesse estágio, a narrativa “o Brasil é conivente com o crime” seria apropriada por atores bolsonaristas e ultraconservadores, que já se apresentam como os verdadeiros defensores da “lei e da ordem”. O discurso de Washington funcionaria como legitimador de uma ofensiva política interna contra o governo Lula, tentando impor a imagem de um Executivo federal incapaz de proteger o país. O risco é a fusão entre o trumpismo externo e o bolsonarismo interno, formando um bloco narrativo transnacional voltado a desestabilizar a democracia brasileira em 2026.
Esses cenários não são ficção. Cada um deles já tem exemplos concretos na região: a Venezuela sofreu ações militares, a Colômbia foi humilhada diplomaticamente, o Equador viu gangues transformadas em terroristas internacionais. O Brasil não é exceção; é apenas o próximo alvo. A diferença é que, pela sua centralidade, o custo estratégico de ver o país enquadrado como “narco-Estado” seria incomparavelmente maior, tanto para o governo federal quanto para a própria ordem democrática latino-americana.
Estratégia de resposta do Brasil
A resposta precisa combinar precisão jurídica, musculatura policial-financeira, comando político e diplomacia ativa — tudo ao mesmo tempo e na mesma direção. O primeiro movimento é nacionalizar a investigação do assassinato de Ruy Ferraz Fontes: ato formal do MJSP requisitando a Polícia Federal, com instauração imediata de força-tarefa integrada (PF, MPF, Receita Federal, COAF/Bacen, PRF, ABIN, Marinha) e cooperação funcional com PC-SP sob cadeia única de custódia. Esse desenho evita a politização estadual, garante perícia independente (balística, genética, química forense, análise de imagens) e cria um rastro probatório inatacável para consumo interno e externo. Simultaneamente, aplicar medidas cautelares financeiras: bloqueio e sequestro de ativos ligados a investigados e a empresas de fachada, mandados de busca contábil em gestoras, fundos e fintechs citados nas apurações, e auditoria expressa com CVM e Bacen sobre controles de prevenção à lavagem. A lógica é simples: seguir o dinheiro, não as bravatas — sem espetáculo, com técnica e resultado.
No horizonte de 24–72 horas, o governo precisa montar um Centro de Direção Estratégica na Casa Civil (sala de situação permanente), com três eixos sincronizados: Operações, Finanças e Comunicação/Diplomacia. Em Operações, PF lidera a força-tarefa; Marinha ativa um quadro de consciência marítima no Atlântico Sul (AIS/VTMS/NAVAREA) em coordenação com a Autoridade Portuária e Receita para perfilamento de cargas em Santos/Paranaguá e linhas para Europa; PRF fecha corredores logísticos prioritários. Em Finanças, COAF e Bacen conduzem um sweep de inteligência sobre transações atípicas associadas à malha de combustíveis e às estruturas “Carbono Oculto”, enquanto a Receita cruza EFD-Contribuições, NF-e e REINF para identificar teias fiscais e simuladores de fluxo. Em Comunicação/Diplomacia, o Itamaraty notifica ONU/UNODC/INTERPOL da federalização e oferece canais de cooperação técnica — não tutela —, ao mesmo tempo em que brifa embaixadas parceiras (UE, BRICS, América do Sul) com fatos e prazos, esvaziando a narrativa de “Estado omisso”. Um porta-voz único técnico (PF/MPF) dá atualizações regulares, com transparência controlada: o suficiente para provar rigor, sem comprometer diligências.
Entre 7 e 14 dias, a prioridade é converter a operação em produtos de prova e medidas judiciais: denúncias robustas, prisões com lastro técnico, quebras de sigilo bem fundamentadas, cooperação jurídica internacional direcionada (EUROPOL, autoridades alfandegárias europeias) para espelhar evidências em portos de destino e comprovar o nexo exportação-lavagem. No mesmo ciclo, a CVM deve publicar orientações extraordinárias de compliance para fundos e administradores, com deveres reforçados de KYC/KYB e testes de integridade retroativos sobre recursos vinculáveis a redes criminosas; quem não cumprir, sofre medidas sancionatórias. No plano policial, impor protocolo mandatório de câmeras corporais operacionais com telemetria inviolável, revisão de ROs “espelhados”, e abertura de procedimentos disciplinares quando houver indícios de conluio — não como gesto simbólico, mas como mensagem inequívoca de soberania disciplinar do Estado. Paralelamente, consolidar um Programa de Proteção a Testemunhas/colaboradores com rotas seguras e custódia federal, porque sem testemunhos blindados a cadeia probatória se fragiliza.
No vetor marítimo e portuário, o Brasil precisa mover-se antes que o façam por nós. Isso significa reforçar, com a Marinha e a ANTAQ, inspeções baseadas em risco (contêineres de commodities com histórico de “rip-on/rip-off”), ampliar scanneres e equipes caninas, e firmar taskings operacionais com Receita e PF para “varreduras surpresa” em terminais sensíveis. Ao comunicar esses passos aos parceiros, o Itamaraty deve adotar a narrativa assertiva de que o país está elevando padrões acima dos acordos — e não respondendo a pressões —, esvaziando, por antecedência, a hipótese de “vigilância tutelar” de terceiros no Atlântico Sul.
A estratégia também exige um cordão sanitário comunicacional contra o enquadramento “narcoterrorista”. O governo não deve importar o léxico de Washington nem adotar soluções de exceção que normalizam o estado de sítio. O discurso deve ser lei, técnica e soberania: o Brasil combate o crime como Estado de Direito e age federalmente quando necessário; não terceiriza soberania, não aceita tutelas, e tampouco embarca em punitivismo performático que só fortalece facções. Isso pede segmentação de mensagens: técnico-jurídica para formadores de opinião e parceiros internacionais; pedagógica e firme para a população, explicando como destruir as finanças do PCC enfraquece a violência no cotidiano muito mais do que “operações espetáculo”.
No longo curso (30–90 dias), a resposta tem de fechar as válvulas que permitem a resiliência da facção. Primeiro, reformas regulatórias: reforço de deveres de prevenção à lavagem para fundos, FIDCs, fintechs de pagamento, prepostos e consultorias de “planejamento tributário”, com auditorias independentes e responsabilização solidária de administradores quando houver dolo ou culpa grave. Segundo, cooperação fiscal internacional ativa (Eurofisc, OLAF) para perseguir lucros da coca nos portos de destino e repatriar ativos. Terceiro, governança policial: controle externo fortalecido, avaliação de desempenho que desincentive letalidade e premie investigação de qualidade, compliance tecnológico das bodycams (criptografia, telemetria, cadeia de custódia digital), e mecanismos anticaptura (rodízio de equipes em áreas sensíveis, due diligence patrimonial periódica de agentes). Quarto, programa de segurança portuária com metas auditáveis e publicação trimestral de indicadores de apreensão/risco, afinando o perfil dirigindo a capacidade escassa para os vetores críticos.
Por fim, o governo precisa testar seus próprios cenários (war-gaming). Se Washington elevar o tom — listas, vistos, alfândega, “operações de presença” —, o Brasil deve ter respostas calibradas previamente escritas: pacote de contranarrativa com fatos e números (apreensões, prisões, valores bloqueados), coalizão regional (UNASUL/BRICS+) para notas conjuntas, e planos de continuidade logística para exportações estratégicas caso alfândegas estrangeiras elevem inspeções. Todo esse conjunto só fará sentido se a mensagem final for coerente: não aceitaremos o rótulo de narco-Estado, nem cederemos à tentação de copiar o teatro da “guerra às drogas”. O caminho brasileiro é outro: inteligência, finanças, direito e diplomacia — com a PF liderando, a Faria Lima respondendo, e o Atlântico Sul sob nossa proteção.
Conclusão — Soberania em disputa
O assassinato de Ruy Ferraz Fontes, longe de ser apenas um ato de violência criminosa, tornou-se um divisor de águas estratégico. Ele condensou, em um único episódio, as falhas estruturais da segurança pública paulista, a infiltração do PCC nas engrenagens do Estado e do mercado financeiro e o risco concreto de instrumentalização externa por parte da extrema-direita global. Ao mesmo tempo em que a facção reafirma sua força interna, os EUA encontram um pretexto narrativo para enquadrar o Brasil como país complacente com o narcotráfico, alimentando a doutrina do “narcoterrorismo” que já foi aplicada contra Colômbia, Venezuela e Equador.
Esse cenário não pode ser tratado como hipótese remota. Ele já está em curso. Tarifas, sanções individuais, atrasos em vistos e operações militares em alto-mar demonstram que Washington está disposto a transformar a América Latina em laboratório de sua nova estratégia de coerção. A execução em São Paulo é o apito de cachorro que conecta a violência interna ao cerco externo, oferecendo munição para a convergência entre trumpismo e bolsonarismo.
Diante disso, não há espaço para hesitação. A resposta do governo federal precisa ser imediata, firme e coordenada: federalizar as investigações, desarticular a blindagem financeira do PCC, demonstrar rigor forense e jurídico, e comunicar ao mundo que o Brasil combate o crime como Estado soberano, não como satélite tutelado. É uma questão de sobrevivência política, diplomática e institucional.
O que está em jogo não é apenas a resolução de um crime emblemático, mas a capacidade do Brasil de se proteger em uma guerra híbrida que combina bala, dólar e narrativa. A soberania nacional será medida pela coragem de assumir o comando da resposta. E essa resposta não pode mais esperar.
Artigo publicado originalmente em <código aberto>