Atitude Popular

“O desfile foi um desfile tecnológico, um desfile que mostra que a China se livrou da dependência”

A vitória chinesa sobre o Japão, celebrada com um desfile tecnológico em Pequim, serviu de moldura para uma semana em que a Organização de Cooperação de Xangai se afirmou como eixo político e econômico de uma ordem multipolar em consolidação

A entrevista que embasa esta matéria foi ao ar no programa Democracia no Ar, da Rádio e TV Atitude Popular, com apresentação de Sara Goes. Convidado do dia, o economista Fábio Sobral analisou como a agenda de segurança, tecnologia e comércio que articula China, Rússia, Índia, Irã e países da Ásia Central redesenha fluxos estratégicos, pressiona a hegemonia do dólar e fortalece o multilateralismo na ONU.

Sobral destacou que a coincidência de calendário não foi casual, foi planejamento. Segundo ele, o desfile alusivo aos 80 anos da libertação chinesa do imperialismo japonês ocorreu em seu rito regular, e a reunião da Organização de Cooperação de Xangai foi posicionada para aproveitar a presença de chefes de Estado. Nas palavras do economista, “o desfile foi um desfile tecnológico, um desfile que mostra que a China se livrou da dependência, inclusive do mercado americano, e celebra uma libertação que é também tecnológica”. A leitura conecta memória e futuro, a comemoração militar enfatiza radares, drones, telecomunicações e a malha industrial que sustenta a política externa chinesa.

O ponto de inflexão, na avaliação do convidado, foi a reaproximação pública entre Xi Jinping e Narendra Modi. “O principal elemento do encontro foi a conversa entre Modi e Xi depois de sete anos, super amistosa, com declarações de velho amigo”, afirmou. Para Sobral, a gestão das pendências fronteiriças no Himalaia pode destravar um movimento mais profundo. “Se China e Índia resolverem o problema territorial, a Índia tende a se alinhar integralmente ao campo dos Brics e ao entorno eurasiático, recuperando um papel industrial que deteve historicamente até meados do século XVIII”.

A Organização de Cooperação de Xangai nasceu como mecanismo de coordenação contra terrorismo, separatismo e extremismo em áreas sensíveis da Eurásia. Esse desenho, disse Sobral, evoluiu para um fórum de integração com agenda de energia, infraestrutura, finanças e ciência. “A organização caminha rapidamente para ocupar o espaço que o G7 pretendia, com uma diferença central, ela reafirma a necessidade de fortalecer a ONU e a legislação internacional, enquanto os Estados Unidos têm, há décadas, passado por cima de resoluções e abdicado de instituições multilaterais”. O contraste ajuda a explicar o apelo diplomático da entidade entre países que buscam amortecer sanções unilaterais e diversificar parcerias.

O debate incluiu a economia política do sistema monetário internacional. Sobral retomou Bretton Woods para explicar as assimetrias contemporâneas. “O privilégio exorbitante do dólar começou quando os países foram obrigados a liquidar contas em moeda americana, depois os Estados Unidos romperam a conversibilidade ouro e passaram a trocar papel por bens reais, complementando com dívida pública para segurar liquidez”, disse. A expansão de acordos de liquidação em moedas locais e fundos de desenvolvimento regionais, avaliou o economista, responde a esse desequilíbrio e encontra terreno fértil no eixo Xangai, Ásia Central e golfo Pérsico.

Ao tratar do Oriente Médio ampliado, Sobral voltou ao vetor industrial. “Irã e China assinaram um acordo de industrialização de longo prazo, o Irã tende a retomar funções de alta cultura e produção que teve historicamente”, afirmou. Mesmo com disputas e intervenções externas, o arco Irã, Iraque e Ásia Central aparece, em sua leitura, como corredor logístico e tecnológico estratégico para a integração euroasiática.

Para as economias do sul global, a janela é de oportunidade, mas pede política industrial e contrapartidas. Sobral usou o exemplo das joint ventures chinesas para argumentar que atração de investimento deve vir acoplada a metas de transferência tecnológica, reinvestimento e formação de cadeias produtivas. “Na China, qualquer multinacional que se instala precisa de sócia local, transfere tecnologia e reinveste a maior parte dos lucros. Sem desenho parecido, países viram hospedeiros periféricos de data centers e plantas que consomem água e energia, sem criar capacidade própria”, disse.

A Índia, por sua escala demográfica e base de serviços, é peça-chave dessa equação. Tarifas estadunidenses recentes e a necessidade de mercado para sua indústria emergente empurram Nova Délhi a calibrar posições, ora via Quad, ora via cooperação asiática continental. A foto de Xi, Putin e Modi conversando amistosamente, mencionada pelo economista, funciona como síntese visual de uma reconfiguração que desloca o centro de gravidade econômico para a Eurásia.

O fio condutor da semana foi a construção de capacidade. Desfile tecnológico, cúpula com pauta de segurança e desenvolvimento, conversas bilaterais sobre fronteiras e comércio, tudo converge para um arranjo em que soberania digital, semicondutores, infraestrutura de dados e pagamentos transfronteiriços entram no núcleo da geopolítica. O recado, sustenta Sobral, é que a multipolaridade deixou de ser promessa para se tornar prática institucionalizada no cotidiano da cooperação asiática.

https://www.youtube.com/watch?v=f8WU6O-O940

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