Atitude Popular

O mito de Sísifo e a soberania brasileira 

Entre a dor cíclica do recomeço e a esperança de um futuro emancipador

Por Reynaldo Aragon 

Carregamos nossas pedras todos os dias — a dívida histórica, a captura tecnológica, a violência simbólica. Como Sísifo, recomeçamos sempre. Mas no peso da pedra há também a promessa de libertação: transformar a sina em luta, a repetição em movimento histórico.

O peso da pedra

Há povos que carregam consigo um destino tecido em silêncio. O Brasil é um deles. Como Sísifo diante de sua pedra, somos condenados a recomeçar sempre, a ver os frutos de nossa luta rolarem montanha abaixo, esmagados pelo peso invisível das elites que nos negam a soberania. Não são deuses vingativos que nos condenam, mas corporações transnacionais, políticos apátridas e um mercado que transforma o sangue e o suor de milhões em estatísticas de volatilidade.

A cada ciclo histórico, a pedra volta a cair. Construímos um projeto de nação, e logo o vemos despedaçado por golpes, por desinformação, por traições de dentro e de fora. A montanha é a mesma, mas as pedras se transformam: antes eram os fuzis do colonialismo, depois a dívida externa, hoje são os algoritmos que moldam consciências e o mantra da fricção zero que promete liberdade enquanto ergue muralhas invisíveis.

O povo brasileiro conhece essa sina. Carrega-a nos ombros, na carne, na memória. Mas, diferentemente de Sísifo, que Camus imaginou sorridente diante do absurdo, nosso sorriso não é resignação: é resistência. No cansaço, na dor, na repetição que parece infinita, pulsa uma esperança subterrânea — a de que cada queda da pedra não é um retorno ao mesmo ponto, mas um ensaio, um prenúncio, um aprendizado histórico que pode um dia nos levar ao cume.

O mito revisitado – De Camus ao Brasil

Albert Camus escreveu que era preciso imaginar Sísifo feliz. Para ele, o herói trágico encontrava no gesto repetido, no recomeço sem finalidade, a possibilidade de uma dignidade absurda. A consciência do fardo, dizia o filósofo, transformava a condenação em liberdade. Mas essa leitura, tão bela e existencial, é também insuficiente. O absurdo de Sísifo não é o nosso.

O Brasil não está condenado por deuses invisíveis, mas por estruturas visíveis, históricas, concretas. Nosso destino não é metafísico, é político. A pedra que carregamos não é um símbolo do absurdo universal, mas da violência colonial que nunca terminou. A cada vez que o povo brasileiro empurra sua pedra montanha acima, enfrenta não a indiferença dos céus, mas as garras do imperialismo, o cinismo da mídia, o parasitismo das elites locais.

Enquanto Camus via na pedra o emblema da condição humana, nós a vemos como um testemunho da luta de classes em sua forma mais brutal. Sísifo sorri resignado diante da eternidade do gesto. Nós, não. Se sorrimos, é porque sabemos que mesmo o recomeço não é idêntico, mas dialético. Cada queda não é repetição pura: é reescrita, é acúmulo, é espiral. A pedra rola, mas o chão onde ela cai nunca é exatamente o mesmo.

É nesse intervalo entre a repetição e a diferença que mora a esperança brasileira. Camus quis libertar o homem do desespero. Nós precisamos libertar um povo inteiro da condenação histórica que o aprisiona.

A soberania em crise – A pedra no século XXI

No século XXI, a pedra que carregamos ganhou novas faces. A soberania nacional, outrora horizonte natural de qualquer povo, foi transformada em palavra suspeita, em fardo ideológico, em relíquia incômoda. As elites financeiras, a mídia corporativa e políticos entreguistas repetem o coro de que independência é atraso, de que autonomia é inviável, de que o destino do Brasil é submeter-se às engrenagens de um mercado global onde nunca ocuparemos o centro.

A narrativa dominante reduz a soberania a fetiche ultrapassado. O que antes era fundamento da dignidade coletiva, hoje é ridicularizado como nacionalismo anacrônico. Na boca dos apátridas, “soberania” soa como insulto, enquanto “abertura de mercado” é apresentada como virtude redentora. Assim, cada tentativa de erguer um projeto de desenvolvimento autônomo é esmagada pela avalanche de discursos que celebram a dependência como modernidade.

O povo, por sua vez, vive em meio a uma dissonância cognitiva social cuidadosamente cultivada. De um lado, sente a dor concreta da perda — empregos que desaparecem, terras entregues, recursos privatizados, decisões tomadas em gabinetes estrangeiros. De outro, é alimentado por uma mídia que naturaliza o saque e disfarça a submissão sob o verniz da integração global. O resultado é um país que recomeça sempre, mas com cada recomeço mais frágil, mais distante de seu próprio destino.

Não nos faltam exemplos. A dependência tecnológica nos algarismos digitais das big techs, a fragilidade energética exposta em cada leilão de petróleo, a submissão diplomática em acordos assimétricos que nos amputam como nação. Cada um desses episódios é uma pedra rolando ladeira abaixo, lembrando-nos de que a montanha da soberania continua diante de nós, intacta, esperando o próximo esforço.

A ideologia da fricção zero – As novas pedras

Se no passado as pedras eram de ferro e pólvora, hoje são de silício e código. O Brasil carrega, montanha acima, não apenas os fardos da dependência econômica e da violência colonial, mas também as pedras invisíveis da era digital. A ideologia da fricção zero — esse mito moderno que promete um mundo sem obstáculos, onde tudo flui com a velocidade de um clique — é, na verdade, um novo peso sobre os ombros coletivos.

A promessa de fluidez ilimitada oculta um aprisionamento sofisticado. Cada vez que deslizamos o dedo pela tela, empurramos uma pedra que não escolhemos. Os algoritmos, vendidos como instrumentos neutros, moldam desejos, fabricam consensos, colonizam consciências. As big techs, travestidas de progresso, transformam-se em senhores de um império invisível que drena dados, riquezas e subjetividades.

Essas novas pedras são mais cruéis porque não se mostram como fardo, mas como conforto. O entretenimento, a comodidade, a rapidez — tudo nos faz crer que não carregamos nada. Mas quanto mais leve parece a vida digital, mais pesado se torna o destino de um povo que perde soberania informacional, cognitiva e tecnológica. É o absurdo camuflado em eficiência, a alienação disfarçada de liberdade.

E assim, todos os dias, o povo brasileiro repete o gesto de Sísifo: acorda e carrega a pedra do algoritmo que decide o que verá, a pedra do aplicativo que define sua mobilidade, a pedra da plataforma que arbitra sua fala. A cada rolar da pedra, a montanha se ergue outra vez, mais alta, mais distante.

O horizonte da esperança – Recomeçar como luta

Mas a pedra não é só condenação. Há, no ato de empurrá-la, uma centelha de sentido que nenhum império, algoritmo ou elite apátrida pode arrancar. O destino de Sísifo não é apenas a repetição da queda, mas a consciência de que cada recomeço guarda a possibilidade de transformação. E no Brasil, essa consciência se torna luta.

Cada vez que a pedra rola, não voltamos ao mesmo ponto. Voltamos a um chão marcado por cicatrizes, por aprendizados, por memória. A repetição não é círculo, é espiral. O gesto que parece condenação é, na verdade, acúmulo histórico. É o povo brasileiro, teimoso em sua resistência, descobrindo que mesmo na queda existe um avanço subterrâneo.

A soberania, tão atacada e ridicularizada, sobrevive como desejo visceral. Sobrevive nas lutas populares que reinventam a democracia, nas comunidades que criam redes de solidariedade, nos jovens que desconfiam do brilho artificial da fricção zero. Sobrevive no sopro de uma história que ainda não terminou.

O horizonte que carregamos não é a submissão eterna, mas a promessa de que um dia a pedra ficará no alto da montanha. Não por milagre, mas por consciência, por luta, por coragem coletiva. É essa esperança, feita de dor e de futuro, que torna suportável o peso. É ela que transforma o absurdo em dignidade, a condenação em rebelião, a repetição em revolução.

Um dia, o Brasil deixará de ser o Sísifo condenado e se tornará o Sísifo insurgente — aquele que empurra sua pedra não para satisfazer os deuses, mas para libertar seu povo.

Ensaio publicado originalmente em <código aberto>