Da Redação
A maior operação já realizada no país contra a infiltração do crime organizado na economia formal cumpre 200 mandados contra 350 alvos em oito estados. O foco é um esquema bilionário no mercado de combustíveis que usava fintechs e fundos para lavar e blindar recursos — com 42 alvos na região da Faria Lima, em São Paulo.
A quinta-feira, 28 de agosto de 2025, começou com uma ofensiva sem precedentes contra a captura do mercado de combustíveis por facções criminosas e seus elos no sistema financeiro. Batizada de Operação Carbono Oculto, a ação envolve Receita Federal, Polícia Federal, Ministérios Públicos (estadual e federal), secretarias fazendárias, ANP e forças de segurança estaduais. São 350 alvos em oito estados — São Paulo, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro e Santa Catarina — com bloqueio de patrimônios para garantia do crédito tributário. É, nas palavras dos órgãos, a maior operação contra o crime organizado da história brasileira em termos de cooperação e amplitude.
A dimensão do esforço dá a medida do problema: cerca de 1.400 agentes em campo, com 200 mandados de busca e apreensão. Em São Paulo, o epicentro simbólico é a avenida Faria Lima, coração do mercado financeiro, que concentra pelo menos 42 alvos, entre empresas, corretoras e fundos de investimento. Segundo as autoridades, parte da cadeia de combustíveis foi capturada pelo Primeiro Comando da Capital, o que explica a combinação de frentes policiais, fiscais e de inteligência.
A investigação detalha um desenho de negócios que vai da importação de insumos à bomba do posto, passando por formuladoras, distribuidoras, transportadoras e lojas de conveniência. Ao mesmo tempo, um núcleo financeiro invisível sustentava a engrenagem: uma instituição de pagamento operava como banco paralelo, com movimentação de R$ 46 bilhões entre 2020 e 2024, valendo-se de brechas regulatórias como a chamada “conta-bolsão”, o que dificultava o rastreamento cliente a cliente. Parte do dinheiro lavado era blindada em, pelo menos, 40 fundos de investimento multimercado e imobiliários, com patrimônio estimado em R$ 30 bilhões, usados para adquirir ativos como terminal portuário, usinas de álcool, frota de caminhões e dezenas de imóveis.
No varejo, a Receita mapeou mais de mil postos associados ao grupo, com movimentação financeira de R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024 e recolhimento tributário incompatível — um rastro que, segundo o Fisco, se traduz em autuações já constituídas de R$ 891 milhões e em prejuízos à arrecadação que passam de R$ 8,6 bilhões. Em outro recorte, 140 postos praticamente não venderam combustível no período, mas “receberam” mais de R$ 2 bilhões em notas fiscais, indício de operações simuladas para circular valores ilícitos.
A força-tarefa também aponta o uso de importadoras interpostas para internalizar nafta, hidrocarbonetos e diesel com recursos de empresas vinculadas à organização — apenas entre 2020 e 2024, mais de R$ 10 bilhões em combustíveis importados sob investigação. O desenho tributário e regulatório do setor foi explorado para empurrar para o consumidor o custo das fraudes: adulteração com metanol e fraudes quantitativas, com menos litros entregues do que o indicado na bomba, aparecem como práticas recorrentes nas redes investigadas. A Secretaria da Fazenda paulista relata que, em mais de 300 postos checados, foram detectadas fraudes qualitativas e quantitativas.
No plano financeiro, o caso acende alerta regulatório sobre o ecossistema de pagamentos. A Receita destaca que mudanças na e-Financeira, aprovadas em 2024 para dar transparência às operações de instituições de pagamento, foram revogadas no início de 2025 após uma onda de desinformação — movimento que, segundo o órgão, ampliou a opacidade explorada por criminosos. O uso de fundos fechados com um único cotista, frequentemente outro fundo, criou camadas de ocultação para dificultar a identificação dos beneficiários finais.
A presença de equipes na Faria Lima sinaliza que a blindagem patrimonial avançou pela indústria de gestão de recursos e serviços financeiros. Entre os alvos estão empresas de pagamento, corretoras e fundos. Reportagens indicam que uma grande gestora independente listada na bolsa estaria entre as investigadas — a companhia não havia se manifestado até o fechamento deste texto. O recado é claro: a desarticulação mira não só a operação dos postos e distribuidoras, mas também as engrenagens de investimento e intermediação que davam aparência de legalidade ao dinheiro do crime.
A amplitude da ofensiva incluiu, ainda, operações correlatas. No Paraná, a PF deflagrou a Operação Tank, voltada à lavagem de dinheiro por meio de uma rede que teria movimentado R$ 23 bilhões desde 2019, com mais de R$ 600 milhões lavados via cadeias de empresas, inclusive instituições de pagamento. Em Curitiba, outra frente mirou ao menos 46 postos, com ordens judiciais de bloqueio que somam R$ 1 bilhão. Embora distintas, as ações convergem para o mesmo vetor: uso do setor de combustíveis como plataforma de sonegação, fraude e lavagem em larga escala.
No eixo fiscal e patrimonial, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ingressou com ações civis para bloquear mais de R$ 1 bilhão em bens, de imóveis a frotas, como garantia ao crédito tributário. Em paralelo, decisões judiciais autorizaram sequestro e bloqueio de valores, além do afastamento de sigilos fiscal e bancário de investigados em praças estratégicas do interior paulista. O objetivo, segundo os órgãos, é cortar os dutos financeiros do crime, proteger a concorrência leal e resguardar o consumidor.
Do ponto de vista concorrencial e de defesa do consumidor, o caso expõe um triplo dano: destruição de arrecadação via sonegação sistemática; corrupção do mercado por adulteração e fraudes em bomba; e captura de ativos reais — de usinas a logística — por estruturas ilícitas travestidas de investimento. A participação coordenada de Receita, MPs, PF, polícias estaduais e ANP indica reconhecimento institucional de que o problema ultrapassa as fronteiras do policiamento tradicional e exige rastreabilidade financeira e regulatória ponta a ponta.
A Operação Carbono Oculto também reabre o debate sobre governança no ecossistema de pagamentos e fundos. A figura da conta-bolsão — conta única em banco tradicional que agrega os recursos de todos os clientes da fintech —, somada ao caráter fechado de determinados fundos, criou caixas-pretas que o poder público agora pressiona para abrir. O aviso para o mercado é inequívoco: a fronteira entre compliance insuficiente e conivência pode custar caro quando a diligência devida falha em detectar, reportar e barrar fluxos do crime organizado.
Haverá coletiva de imprensa às 11h, na sede do Ministério Público de São Paulo, onde os órgãos devem detalhar próximos passos, a lista de cidades e o alcance das medidas cautelares. Até lá, a fotografia do dia já basta para marcar um ponto de inflexão: a maior investida integrada do Estado brasileiro contra a infiltração do crime na economia formal tomou a Faria Lima de surpresa e colocou sob escrutínio uma teia que, segundo o Fisco, movimentou R$ 52 bilhões apenas em postos entre 2020 e 2024.