Atitude Popular

Ramaphosa liga insegurança alimentar a choques climáticos e desigualdade e cobra ação conjunta na África do Sul

Da Redação

Em meio ao Dia Mundial da Alimentação e a protestos por fome, Cyril Ramaphosa elevou o tom: disse que “muitas famílias não conseguem pagar comida nutritiva”, cobrou varejistas e governos locais, citou desastres climáticos como motores da fome e prometeu integrar programas sociais, agricultura e preços justos numa resposta nacional.

No centro de uma semana marcada por balanços sobre a fome no país e por mobilizações sociais, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa colocou a segurança alimentar no topo da agenda. Em discursos e notas oficiais recentes, ele insistiu que a crise é sistêmica, impulsionada pelo choque entre clima extremo, desigualdade de renda, preços altos e gargalos na produção e distribuição de alimentos. O tom foi pragmático, mas mais duro com o setor privado: Ramaphosa pediu que grandes redes do varejo ampliem a oferta de itens saudáveis a preços acessíveis e que atuem como parceiras em um pacto nacional contra a fome.

O diagnóstico presidencial parte de alguns fatos incômodos. Apesar de uma rede de proteção social ampla, milhões de pessoas no país ainda vivem com acesso inadequado ou severamente inadequado a alimentos. Ramaphosa reconhece que, em um contexto de desemprego elevado e crescimento econômico fraco, muitas famílias simplesmente não conseguem pagar por uma cesta nutritiva. Ao mesmo tempo, eventos climáticos extremos — secas e enchentes — vêm afetando produção agrícola, infraestrutura e cadeias logísticas, pressionando estoques, encarecendo fretes e criando volatilidade nos preços em mercados regionais sensíveis.

A leitura presidencial ecoa um debate mais amplo na África Austral: o clima, quando combinado com concentração de renda e baixa produtividade agrícola, cria um círculo vicioso. Sobe o custo de proteínas, frutas e verduras; cai a qualidade da dieta; ampliam-se quadros de desnutrição, sobretudo entre crianças, mulheres e idosos. O governo reconhece que não basta subsidiar ou “zerar” tributos de alguns itens; é preciso eficiência na compra pública, políticas inteligentes de estoques, apoio a pequenos produtores, aceleração de irrigação resiliente e um esforço coordenado com municípios para integrar hortas urbanas, merenda escolar e feiras locais.

Ramaphosa também falou ao setor privado com clareza: supermercadistas e distribuidores não podem concentrar suas margas apenas em nichos de maior renda enquanto a base da pirâmide fica presa a ultraprocessados baratos e de baixa qualidade. A demanda presidencial é que as redes usem sua escala logística para baratear proteínas e vegetais, revisitem políticas de perdas e desperdício, ampliem parcerias com cooperativas e agricultores familiares e expandam linhas “low-cost” de alimentos in natura. Em paralelo, o governo sinaliza que quer alinhar incentivos: compras públicas que puxem produção local, redução de intermediações que inflacionam preços e uma “ponte” entre assistência social e inclusão produtiva rural.

A dimensão climática entrou no discurso com força. As últimas temporadas de seca, alternadas com enchentes destrutivas, afetaram estradas, silos e eletricidade, elementos críticos para manter cadeias de frio e transporte. Ramaphosa vem vinculando esse cenário a uma agenda de adaptação e resiliência: irrigação mais eficiente, sementes adaptadas, microseguro agrícola, restauração de bacias e manutenção preventiva de infraestrutura. Ao amarrar clima e fome, o presidente pede cooperação regional, pois choques no vizinho rapidamente reverberam em preços e disponibilidade dentro da África do Sul.

No plano social, o governo reafirma que os programas de transferência de renda e benefícios continuam sendo o escudo imediato contra a fome, mas admite que não podem operar isoladamente. A estratégia que se delineia combina proteção de renda com redução do custo da cesta básica, qualificação de preferências alimentares nas compras públicas, estímulo a hortas comunitárias e combate a perdas ao longo da cadeia. O objetivo é simples na formulação e complexo na execução: que a calorias baratas cedam espaço a uma dieta de qualidade viável no bolso do cidadão.

O debate público se acirrou nas ruas e nos eventos da semana. Em cúpulas e cátedras universitárias, Ramaphosa insistiu na “responsabilidade comum” de governo, empresas e sociedade civil. O presidente acenou, ainda, a planos e iniciativas setoriais que pretendem “puxar” o varejo para um compromisso mensurável — por exemplo, metas de preço e cobertura geográfica para cestas saudáveis, expansão de feiras diretas do produtor e programas de fidelidade social que reduzam custo de itens nutritivos para famílias de baixa renda. A ideia é que indicadores como prevalência de desnutrição, preço de uma cesta nutritiva mínima e desperdício por quilo se tornem métricas públicas e acompanhadas por painéis regulares.

Há, contudo, fricções. Movimentos sociais e pesquisadores apontam que a janela de ação é estreita: sem recuperação do emprego e sem uma política agrícola de produtividade com assistência técnica e crédito direcionado, o país seguirá enxugando gelo. Eles pedem, entre outros pontos, uma política de estoques estratégicos para arroz, milho e feijão; requalificação logística para reduzir custos de transporte; telemetria e dados em tempo real sobre preços regionais; e um regime de incentivos para que redes varejistas ancorem lojas “fresh food” em áreas periféricas. Parte dessa agenda demanda coordenação federativa fina e disciplina de execução.

O próprio Ramaphosa reconheceu um paradoxo: mesmo com alto gasto social, a desnutrição persiste em bolsões do país. O governo quer entender e atacar as “falhas de tradução” entre orçamento e prato — onde se perdem recursos, onde a logística emperra, onde o incentivo distorce, onde a cesta ofertada é calórica, mas pobre em micronutrientes. A promessa é transformar a segurança alimentar em um teste de capacidade de governo: menos anúncio, mais entrega; menos silos, mais integração; menos retórica, mais proteína, frutas e verduras acessíveis na mesa do cidadão.

No tabuleiro internacional, o presidente conecta a pauta doméstica a dois vetores: a necessidade de cooperação regional em clima e alimentos e a defesa de corredores humanitários em conflitos, com ênfase no princípio de que “comida não é arma”. Ao trazer essa dimensão ao debate, Ramaphosa alinha a política externa sul-africana a uma leitura de segurança humana: garantir acesso a alimentos é parte da estabilidade econômica, social e democrática.

O saldo da semana é um recado direto: a fome no país não será resolvida por uma única canetada. Exige uma coalizão de políticas públicas e privadas com métricas objetivas, prazos curtos e foco territorial. A cobrança presidencial por ação do varejo, somada a metas de adaptação climática e ao redesenho da compra pública, pode inaugurar um ciclo de execução orientado a resultado. O desafio é fazer o discurso descer para a ponta — da fazenda ao carrinho de compras — sem que o preço final estoure o orçamento das famílias. Se essa ponte for construída, a retórica da semana poderá se converter no que importa: menos filas, menos desperdício, mais comida de verdade no prato.

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