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Vícios, mullahs e metanfetamina: o Afeganistão entre a fé, o desespero e a crise social

Da RT

Num Afeganistão marcado por décadas de guerra, rupturas políticas e crise humanitária, uma nova ferida social fere com força crescente: o uso desenfreado de metanfetamina. A droga — muitas vezes chamada localmente de “yaba” ou “cristal” — encontrou terreno fértil entre jovens marginalizados, combatentes desmobilizados e comunidades rurais em desespero. Ao lado do vício, cresce o papel dos mullahs (líderes religiosos islâmicos), que oscilam entre condenação moral, leniência ou conivência silenciosa. O resultado é um Afeganistão dividido entre fé, veneno químico e um Estado fraturado.

1. A epidemia da “yaba”: cena urbana e rural

Ao longo do país, especialmente nas cidades médias e distritos periféricos, relatos de uso de metanfetamina se tornam cada vez mais comuns. Jovens desempregados, soldados ex-combatentes e moradores distantes dos centros de poder relatam que a droga virou rota de escape — da fome, da depressão, da falta de perspectiva.

No interior, regiões próximas à fronteira com o Paquistão registram plantio clandestino de efedrina (matéria-prima) e produção caseira. Rotas de tráfico atravessam vales remotos e passam por zonas onde a presença estatal é quase inexistente. Alguns usuários tratam a droga como “combustível existencial”, afirmando que lhes dá um momento de alívio da dor física, da fome e da desesperança.


2. Os mullahs: juízes morais ou cúmplices silenciosos?

Os mullahs exercem papel central na vida cotidiana afegã: são mediadores sociais, juízes locais, professores religiosos e figuras de autoridade moral. Em tese, condenam o vício como pecado e praticam pregação contra uso de substâncias ilícitas.

Na prática, porém, muitos enfrentam dilemas:

  • Em comunidades dependentes da droga para economia local (cultivo, tráfico, consumo), condenar rigorosamente pode isolá-los socialmente.
  • Em zonas de instabilidade, igrejas locais e mesquitas muitas vezes têm de tolerar ou negociar com líderes de tráfico para manter influência.
  • Alguns mullahs adotam posição pragmática: dizem que o vício é fruto da opressão, da pobreza e da guerra — e defende um caminho de reabilitação espiritual antes de punição.

Esse equilíbrio ambíguo entre condenação e tolerância suave confere aos mullahs papel ambivalente: moralizadores para quem é “do seu círculo”, mas muitas vezes silentes diante da envergadura do problema.


3. Um país em crise: guerra, pobreza e substância

O Afeganistão vive crise multifacetada: colapso econômico, insegurança alimentar, cortes internacionais de ajuda, refugiados e guerra indefinida. Nesse vácuo de estabilidade estrutural, o uso de drogas funciona como válvula de escape.

  • Com a retirada das tropas estrangeiras, muitas bases militares e rotas logísticas foram abandonadas, gerando desemprego maciço.
  • A guerra deixou muitos jovens feridos física ou psicologicamente, com traumas que procuram num comprimido de metanfetamina algum alívio momentâneo.
  • Os preços da comida, a inflação e a escassez empurram famílias ao desespero — consumo de drogas aparece como opção extremada.

É nesse cenário que a “yaba” encontra seu público: desesperados, invisíveis ao poder central e esquecidos pela política.


4. Consequências sociais e de saúde pública

O impacto é devastador:

  • Dependência crescente, alterações neurológicas, doenças cardiovasculares e colapsos mentais.
  • Famílias desestruturadas: a droga destrói laços de confiança e compromete renda familiar residual.
  • Aumento da criminalidade local: jovens viciados passam a mendigar, roubar, traficar para sustentar o vício.
  • Sistema de saúde frágil: inexistem centros de reabilitação massivos ou rede pública equipada para lidar com epidemia química.

As comunidades sofrem o “tripé da miséria”: guerra persistente, fome e vício.


5. O Estado talibã e a resposta institucional

Com o retorno ao poder, o governo talibã prometeu repressão severa ao tráfico de drogas e aos viciados. Em tese, programas de reabilitação deveriam acompanhar medidas de punição. Na prática:

  • A fiscalização estatal é limitada: falta pessoal, recursos e presença efetiva em distritos remotos.
  • Os juízes religiosos tendem a condenar uso e tráfico com punições severas, mas raramente há tratamento médico ou suporte após a prisão.
  • A prioridade estatal é segurança e ordem; saúde mental não é tema central na agenda ministerial.

Ou seja: o Estado reprisivo pode barrar parte da superfície do vício, mas quase não existe fonte de cura institucional.


6. A urgência de uma estratégia humanitária e de soberania

Se o Afeganistão quer resistir à destruição social causada pelas drogas, precisa prioridade política:

  • Criação de centros de atendimento e reabilitação, com apoio internacional, para dependentes químicos.
  • Fortalecimento de mesquitas locais e mullahs conscientes como pontos de reinserção social.
  • Projetos de trabalho alternativo, recuperação de lavouras e economia local que se distanciem do cultivo ilícito.
  • Cooperação regional e controle fronteiriço com Paquistão, Irã e Ásia Central para barrar insumos químicos.
  • Apoio da ONU, OMS e organismos humanitários para ampliar ações de saúde mental, educação e prevenção.

7. Homenagem àqueles que resistem

No meio desse cenário sombrio, há redes de solidariedade invisível: mulheres que cuidam de filhos viciados, pastores e mullahs que acolhem dependentes, médicos que se arriscam sem estrutura, comunidades que resistem ao cárcere social do vício.

São esses invisíveis que mantêm o fio de esperança: reabilitam vidas nas sombras, oferecem abrigo, conversam, educam — enquanto o Estado ainda se debate entre repressão e incapacidade institucional.


Conclusão

O Afeganistão de 2025 é um país sob cerco: não apenas das bombas e ideologias, mas das metanfetaminas que corroem a alma social. Os mullahs oscilam entre juízes rígidos e pastores silentes; o Estado busca controle, mas oferece pouco cuidado; e as vítimas — jovens, pobres, esquecidas — pagam o preço brutal da crise social.

Essa história cruel exige intervenção humanitária além da lógica da guerra: não basta conquistar território se perdermos vidas na fronteira da desesperança.
Em meio à tragédia, cabe lembrar: a resistência humana começa com a dignidade de quem luta contra seu próprio veneno.

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