Por Jeser Batista
Este texto surgiu da preparação para participar do programa Código Aberto, da Canal TV Código Aberto. A ideia inicial era reunir anotações para uma conversa, mas o processo acabou se transformando em algo maior: uma espécie de roteiro interpretativo sobre a presença e a influência dos Estados Unidos na América Latin. A base e referencia das informações contidas e abordadas neste texto foram extraídas da livre interpretação da série Operação Águia, produzida pela UFSC e o IELA.
Não se trata portanto, de um trabalho acadêmico, mas de uma leitura ideológica progressista, guiada por uma vontade simples de compreender e explicar os processos históricos que moldaram nosso continente, sob a luz das intervenções norte americanas no continente e como isso se enraizou na cultura sul americana fascista e submissa, da direita e extrema direita do continente. É um texto de aproximação, um convite para quem quiser entender por que tantas decisões tomadas em Washington ecoaram nas ruas de Santiago, Buenos Aires, Brasília ou San Salvador.
A história começa muito antes das ditaduras e dos golpes. No século XVII, um grupo de peregrinos protestantes assina o Pacto do Mayflower, (1620) convencido de que estava fundando uma nação escolhida por Deus. Dessa crença nasce o mito da “missão divina”. Já no século XIX, o jornalista John O’Sullivan formula o chamado “Destino Manifesto” (1839), com a ideia de que os Estados Unidos tinham o dever moral de expandir-se e “civilizar” o continente.Essa mistura de fé, armas e propriedade se tornaria o código genético de um império: uma visão que transforma a conquista e o genocídio em ato de salvação.
Em 1823, o presidente James Monroe adiciona um novo capítulo a essa narrativa com a famosa frase “América para os americanos”. O que parecia um discurso de independência latino-americana era, na verdade, o primeiro rascunho de uma política de tutela. Nasceu então a Doutrina Monroe que deu aos EUA o direito – autoproclamado – de intervir em qualquer país do continente sob o argumento de proteger a liberdade. Guerras como a do México (1846–1848) e a Hispano-Americana (1898) consolidaram o papel dos Estados Unidos como árbitro do hemisfério; decretando que a partir dali, já não precisaria mais de justificativas externas.
A partir do século XX, a lógica imperial ganha novos disfarces. Com a Guerra Fria, o inimigo muda de nome, mas não de função: o “anticomunismo” se torna o álibi perfeito para golpes, ditaduras e intervenções disfarçadas de cooperação. É nesse contexto que nasce a Operação Condor, rede de coordenação entre as ditaduras do Cone Sul. Desde o Chile, Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai e Bolívia, com apoio de inteligência norte-americano. A operação foi o sistema nervoso de uma repressão continental que abriu caminho para o neoliberalismo, pois antes de implantar o mercado “livre”, foi preciso amordaçar as sociedades.
O Chile foi o laboratório principal dessa experiência. Quando Salvador Allende nacionalizou o cobre e ampliou direitos sociais em 1970, os Estados Unidos reagiram com sabotagem econômica, greve de caminhoneiros e desinformação. Em 11 de setembro de 1973, o golpe de Pinochet instalou uma ditadura que aplicaria o receituário dos Chicago Boys, (vale outro texto só deste caso ) discípulos de Milton Friedman. Privatizações, austeridade e repressão se misturaram sob o discurso da eficiência. O resultado: o Chile virou vitrine de um modelo econômico que prospera sobre ruínas humanas.
No Brasil, a história tem o mesmo roteiro com sotaque local. Antes do golpe de 1964, o IBAD e o IPES financiaram campanhas e propagandas anticomunistas com dinheiro estrangeiro. Durante a ditadura, os convênios MEC–USAID remodelaram a educação para atender à lógica tecnocrática e subordinada ao capital internacional. Agências como USIA e USIS disseminaram a cultura norte-americana, enquanto o país se adaptava ao papel de economia dependente. Mesmo depois da redemocratização, os anos 1990 mantiveram o projeto vivo — agora com privatizações, acordos com o FMI e o retorno da mesma cartilha liberal sob o disfarce democrático.
A Argentina repetiu a fórmula com sua própria tragédia. O golpe de 1976 derrubou Isabel Perón e instaurou a Junta Militar. Sob o ministro Martínez de Hoz, o país mergulhou em um modelo de abertura financeira e endividamento externo, enquanto milhares eram presos, torturados ou desapareciam nos porões do regime. O terror de Estado e o “ajuste” caminharam juntos.
No Uruguai, o autogolpe de Bordaberry em 1973 impôs um regime cívico-militar que perseguiu sindicatos e movimentos sociais. No Paraguai, Alfredo Stroessner manteve uma das ditaduras mais longas do continente (1954–1989), com apoio direto dos EUA em nome da “luta anticomunista”. Na Bolívia, uma sequência de quarteladas entre 1964 e 1980 ( De Banzer a García Meza) serviu como laboratório de ajustes econômicos inspirados na ortodoxia liberal.
No Peru, a combinação de guerra interna e “estabilização” econômica desembocou no autogolpe de Alberto Fujimori, em 1992, que dissolveu o Congresso e aplicou as reformas exigidas pelos organismos financeiros internacionais. Na Colômbia, o Plan Colombia, iniciado em 1999, consolidou a presença militar norte-americana sob o pretexto de combater o narcotráfico, gerando deslocamentos internos e violência paramilitar. Já na Venezuela, o golpe frustrado de 2002 contra Hugo Chávez marcou o início de outra fase de dominação: a das sanções econômicas e do isolamento internacional – a guerra sem tiros-, feita de bloqueios e algoritmos.
No Caribe e na América Central, a dinâmica foi semelhante. Em El Salvador, uma oligarquia que controlava quase todas as terras manteve o país sob domínio militar e repressão até o surgimento da FMLN nos anos 1980. O assassinato de Dom Óscar Romero, em 1980, simbolizou o preço da resistência. Os Estados Unidos financiaram o exército e os paramilitares até os acordos de paz de 1992. Em Granada, o governo socialista de Maurice Bishop tentou construir um caminho soberano, mas acabou invadido por sete mil soldados norte-americanos em 1983, sob o pretexto de proteger estudantes. A mensagem foi clara: qualquer tentativa de autonomia seria tratada como ameaça.
Essas intervenções não se sustentaram apenas pela força militar. Houve também a dominação pela engenharia cultural e educacional. Programas como a USAID, e instituições como a USIA e as fundações universitárias norte-americanas, promoveram o que chamavam de “cooperação técnica”, mas que na prática disseminava valores e modelos econômicos favoráveis ao capital privado. A ideia de “modernização” virou sinônimo de submissão. A racionalidade neoliberal foi apresentada como ciência neutra, e a desigualdade como preço inevitável do progresso.
Ao olhar esse percurso inteiro, desde o Mayflower ao neoliberalismo, das cruzes às sanções, vemos que a “coerência é assustadora”. Há uma linha contínua que liga o mito religioso do povo escolhido à lógica política da dominação econômica. Primeiro a fé, depois a doutrina, depois o exército, depois o mercado.
O Brasil, a Argentina e o Chile formaram o núcleo duro do laboratório neoliberal; El Salvador e Granada foram o campo de testes das armas. Hoje, o controle já não depende de tanques, mas de dívidas, sanções e plataformas digitais. A dominação se sofisticou e é mais eficaz, continua, invisível e cotidiana, nos algoritmos que definem o que vemos, pensamos e acreditamos.
Mas para compreender de forma ainda mais profunda a história contada aqui, é importante conhecer também o glossário das siglas e instituições mencionadas ao longo do texto. Cada uma delas representa um pedaço da engrenagem que sustentou e sustenta até hoje o projeto de dominação política, econômica e cultural sobre a América Latina. Saber o que significavam e como atuavam, além de, de onde vinham seus recursos, quais ideias defendiam e a quem realmente serviam, ajuda a enxergar que a guerra pela influência nunca foi apenas militar. Foi também uma guerra de palavras, programas e acordos técnicos que moldaram a vida de gerações inteiras. Segue abaixo um Glossário.
IBAD — Instituto Brasileiro de Ação Democrática
Fundado em 1959, o IBAD foi financiado por empresários brasileiros e norte-americanos com o objetivo de combater o avanço de ideias nacionalistas e de esquerda no Brasil. Atuou fortemente em campanhas eleitorais, propaganda anticomunista e apoio a parlamentares conservadores. A CPI do IBAD, em 1963, revelou vínculos diretos com empresas e agências dos Estados Unidos.Chegou a eleger cerca de 800 políticos brasileiros, entre executivo estaduais e legislativos estaduais e federais.
IPES — Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
Criado em 1962, o IPES complementava a atuação do IBAD. Produzia estudos, cursos e materiais de “formação cívica” para difundir o pensamento liberal-conservador e o anticomunismo nas classes médias e empresariais. Foi um dos articuladores civis do golpe de 1964.
USAID — United States Agency for International Development
Agência norte-americana criada em 1961 para promover “cooperação técnica” e “desenvolvimento”. Na América Latina, atuou na educação (convênios MEC–USAID no Brasil), agricultura, saúde e administração pública. Na prática, disseminou políticas de modernização alinhadas ao liberalismo econômico e à influência dos EUA.
USIA — United States Information Agency
Fundada em 1953, a USIA era o órgão de propaganda e diplomacia cultural do governo dos EUA durante a Guerra Fria. Financiou programas educacionais, intercâmbios, bibliotecas, filmes e campanhas de informação para difundir a imagem positiva dos Estados Unidos e seus valores políticos e econômicos.
USIS — United States Information Service
Braço operacional da USIA em cada país. No Brasil e em outros países latino-americanos, o USIS mantinha centros binacionais, bibliotecas, cineclubes e programas de intercâmbio que serviam como instrumentos de influência cultural e ideológica.
MEC–USAID — Convênio Ministério da Educação (Brasil) e USAID
Acordos firmados durante a ditadura militar brasileira (anos 1960–1970) entre o MEC e a USAID. Reestruturaram o sistema educacional com ênfase tecnocrática e empresarial, reduzindo a formação humanista e fortalecendo a lógica de produtividade e eficiência importada dos EUA.
Condor — Operação Condor
Rede transnacional de repressão criada na década de 1970 pelas ditaduras do Cone Sul (Chile, Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai e Bolívia), com apoio dos EUA. Permitia troca de informações, sequestros e execuções de opositores políticos entre fronteiras. É um dos maiores exemplos de cooperação repressiva da história contemporânea.
FMLN — Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional
Coalizão de grupos guerrilheiros salvadorenhos formada em 1980, em resposta à repressão militar e à desigualdade extrema em El Salvador. Recebeu apoio popular e encerrou suas atividades armadas em 1992, após acordo de paz mediado pela ONU.
Plan Colombia
Programa bilateral iniciado em 1999 entre os Estados Unidos e a Colômbia, oficialmente para combater o narcotráfico e grupos armados. Na prática, expandiu a presença militar norte-americana, fortaleceu grupos paramilitares e aumentou a dependência econômica e política colombiana.
CIA — Central Intelligence Agency
Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. Criada em 1947, teve papel direto em golpes e desestabilizações políticas durante a Guerra Fria, incluindo apoio a operações no Chile (1973), Brasil (1964) e diversos países da América Central.
ONU — Organização das Nações Unidas
Instituição internacional fundada em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, para promover a paz e a cooperação entre os países. Atuou como mediadora em processos de paz na América Central, como o fim da guerra civil de El Salvador, em 1992.
FMI — Fundo Monetário Internacional
Organismo financeiro criado em 1944, sediado em Washington. Seu objetivo oficial é promover estabilidade econômica global, mas suas políticas de empréstimo e “ajustes estruturais” — especialmente nos anos 1980 e 1990 — impuseram cortes sociais e reformas neoliberais em países latino-americanos.
OEA — Organização dos Estados Americanos
Criada em 1948, com sede em Washington, é composta pelos países do continente americano. Sob forte influência dos EUA, teve papel ambíguo em momentos de crise: defendeu a democracia em alguns casos, mas também legitimou golpes e intervenções em outros.
Chicago Boys
Grupo de economistas chilenos formados na Universidade de Chicago sob orientação de Milton Friedman e Arnold Harberger. Após o golpe de Pinochet em 1973, aplicaram no Chile um modelo econômico neoliberal de choque, baseado em privatizações e cortes sociais.
IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
Órgão público brasileiro responsável pela produção de estatísticas oficiais e levantamentos censitários. Embora não envolvido nos processos citados, é frequentemente usado como referência em análises históricas e econômicas.
ONUAA / ONU Mulheres / UNESCO (caso sejam mencionadas em versões futuras do texto)
Agências multilaterais das Nações Unidas que atuam em desenvolvimento humano, educação e igualdade de gênero. Incluídas aqui apenas para referência de comparativo institucional — em oposição às agências norte-americanas voltadas ao controle ideológico.
USAID / USIA / USIS — tríade da influência cultural
Juntas, essas três agências formaram o eixo do “soft power” norte-americano: desenvolvimento técnico, propaganda e penetração cultural. Sua missão era “vender” o modelo de sociedade liberal como universal, moldando mentalidades e políticas públicas em toda a América Latina.
A história, enfim, mostra que a guerra nunca acabou. Só mudou de forma e de armas.
Jeser Batista.
Canal Notórios Bastardos.