O Brasil que tenta taxar bilionários é barrado por um Congresso blindado, uma mídia cúmplice e um STF conciliador. Por trás do teatro da institucionalidade, repete-se a história de sempre: ordem para os ricos, repressão para o povo
O Brasil vive uma disputa feroz entre dois projetos de país. De um lado, um governo que tenta implementar medidas de justiça fiscal mínimas como o aumento do IOF, voltadas a arrecadar recursos dos segmentos mais favorecidos. Do outro, um Congresso que age como corretor de interesses privados, blindado por uma imprensa que opera como extensão de seu sistema de proteção. O impasse não é apenas técnico, nem institucional, é ideológico e estrutural. E não é novo. Ele repete, sob novas formas, a lógica denunciada no livro Constitucionalismo Autoritário e Ditadura, resultado de ampla pesquisa sobre as Constituições de 1967 e 1969 e a instrumentalização do Direito como tecnologia de dominação no regime militar.
“O uso do ‘direito’ na sustentação do regime”, diz o livro, foi essencial para dar aparência de legalidade à repressão. O que estava em jogo era a manipulação do aparato jurídico para consolidar “práticas autoritárias” sob o verniz da ordem. A conjuntura atual repõe esse dilema. Quando o governo Lula editou um decreto para aumentar alíquotas do IOF com vistas a arrecadar mais de R$ 20 bilhões, o Congresso reagiu de forma imediata, revogando o decreto com base em argumentos de “insegurança jurídica”, como se fosse um guardião neutro da Constituição. O governo, por sua vez, acionou o STF, que suspendeu tanto o decreto presidencial quanto sua derrubada legislativa e convocou uma audiência de conciliação, como se o problema fosse apenas uma divergência interpretativa e não um veto político às tentativas de redistribuição.
A semelhança estrutural com o período analisado no livro Constitucionalismo Autoritário e Ditadura é evidente. Assim como na ditadura, em que o direito foi moldado para “produzir um novo paradigma de legalidade, que consagrasse o autoritarismo como expressão legítima da ordem” (p. 33), hoje o jogo institucional também fabrica consensos jurídicos para inviabilizar políticas redistributivas. A justificativa técnica de “segurança jurídica” volta a ser usada não para proteger o Estado Democrático de Direito, mas para conservar os privilégios de uma elite refratária a qualquer mudança.
O livro mostra que, durante o regime militar, o discurso da legalidade era acionado de forma estratégica para legitimar ações autoritárias. A Constituição de 1967 e a Emenda nº 1 de 1969 criaram uma engenharia normativa que permitia a centralização do poder sob a fachada constitucional. “Houve uma forte preocupação em estabelecer uma aparência de normalidade constitucional” (p. 43), mesmo quando os direitos eram sistematicamente violados. Hoje, o mesmo recurso à aparência de normalidade serve para neutralizar decisões legítimas do Executivo quando confrontam interesses estabelecidos, como no caso do IOF.
O que esse imbróglio evidencia, e que a campanha #TaxaçãoBBB captou tão bem, é o bloqueio sistemático a qualquer medida que ameace os privilégios dos bancos, bilionários e grandes grupos econômicos. Já a mobilização digital em torno da #CongressoInimigoDoPovo revela que uma parte significativa da população compreendeu a raiz do problema, o Legislativo serve aos de cima e sabota, abertamente, políticas voltadas aos de baixo.
Lula foi direto ao ponto no lançamento do Plano Safra 2025/2026, ao afirmar, “É preciso diminuir os privilégios de alguns para dar um pouco de direito para os outros. De repente, você vê o lobby. Não virou uma pessoa que é lobista, virou uma indústria de lobby.” O que Lula verbalizou é o que o livro, com outra linguagem, demonstra: a manutenção dos privilégios não se dá apenas pela força, mas por um sistema de mediações jurídicas, institucionais e discursivas que estabilizam a desigualdade como se fosse cláusula pétrea.
Esse tipo de denúncia é intolerável para a velha ordem. Por isso, a reação foi imediata. A imprensa oligárquica partiu para o ataque, Folha, Globo e Estadão classificaram o enfrentamento como “populismo fiscal” e acusaram o presidente de estimular um clima de guerra institucional. O Jornal Nacional tratou a campanha digital como “ataques ao Congresso”, clamando por “moderação” e apagando deliberadamente o conteúdo do conflito, o direito à disputa política sobre quem paga a conta do Estado. É o mesmo tipo de neutralidade cúmplice que o livro denuncia ao analisar a atuação do STF durante a ditadura, “as decisões da Corte […] refletiram as tensões e transformações sociais da época” e serviram para preservar a aparência de normalidade mesmo diante de violações sistemáticas de direitos fundamentais.
Hoje, esse jogo de aparência se modernizou. Não se trata mais apenas de blindar a ordem institucional com linguagem jurídica, mas de produzir um campo simbólico onde toda tentativa de enfrentamento aos privilégios aparece como ameaça à estabilidade. O discurso do presidente é transformado em “radicalismo”, a reação popular é lida como “ódio às instituições”, e a pauta redistributiva se torna sinônimo de “irresponsabilidade”. Essa engenharia da percepção é parte do campo de batalha onde se trava uma guerra política de novo tipo, travestida de cobertura jornalística, parecer técnico e moderação institucional. O inimigo não é só neutralizado, é desfigurado diante do público, em nome da “racionalidade”, da “governabilidade”, da “normalidade democrática”.
A matéria publicada no jornal O Povo, que tenta vender a ideia de um Lula enfraquecido, impopular e doente, é um exemplo didático de como a mídia corporativa atua como engrenagem do mesmo sistema que protege os privilégios que Lula tenta enfrentar. Meu texto em resposta a esse editorial rompe com esse enredo. Denunciei a tentativa de reduzir a política a um jogo de aparência, onde a idade e a saúde de um presidente pesam mais que sua capacidade de representar o povo. Porque o que realmente incomoda a elite não é a idade de Lula, é o fato de que, aos 79 anos, ele segue sendo a única liderança capaz de mobilizar afetos populares contra os interesses blindados da ordem.
O livro Constitucionalismo Autoritário e Ditadura, resultado de uma pesquisa financiada pelo CNPq, oferece um alerta claro para o momento presente. Ele mostra como a ditadura mobilizou juristas, normas e instituições para consolidar um regime de exceção com aparência de legalidade. “A análise do passado autoritário é, nesse sentido, um exercício necessário para a compreensão dos desafios presentes e futuros relacionados à efetivação dos direitos fundamentais e à garantia da dignidade humana.” É isso que está em jogo hoje. A diferença é que a repressão se atualizou, não vem mais de fardas, mas de decretos legislativos, editoriais, liminares e hashtags silenciadas. A luta por um novo constitucionalismo democrático, que enfrente privilégios, redistribua poder e desarme a indústria do lobby, está só começando. O livro está disponível gratuitamente em plataformas como a Amazon e outros repositórios acadêmicos, como parte do compromisso público com a memória institucional e a crítica jurídica.
Trump na história

A recente manifestação de Donald Trump em defesa de Jair Bolsonaro, ao classificar as ações judiciais contra o ex-presidente brasileiro como uma “caça às bruxas”, reforça a estratégia política de vitimização de lideranças de extrema-direita que buscam se blindar de qualquer responsabilização institucional. O ex-presidente norte-americano, ao afirmar que Bolsonaro “não é culpado de nada” e que sua perseguição seria motivada apenas por ter “lutado pelo povo”, ecoa uma retórica amplamente conhecida desde seu próprio mandato, que mobiliza afetos antissistema para sustentar privilégios e legitimar a sabotagem de políticas redistributivas. A mensagem de Trump, portanto, atua como reforço simbólico de um campo de alianças globais no qual a extrema-direita se apresenta como vítima de estruturas democráticas, mesmo quando, na prática, age para corroê-las por dentro.
Essa postura de Trump se conecta diretamente ao cenário brasileiro descrito no texto, em que medidas mínimas de redistribuição, como o aumento do IOF, são imediatamente neutralizadas por um Congresso capturado por interesses privados e blindado por uma imprensa cúmplice. Ao defender Bolsonaro, Trump participa, mesmo à distância, da manutenção de uma engenharia discursiva que transforma qualquer tentativa de enfrentamento de privilégios em sinal de autoritarismo. Assim como no período ditatorial estudado pelo livro Constitucionalismo Autoritário e Ditadura, a atual moldura jurídica e midiática no Brasil constrói consensos capazes de inviabilizar políticas voltadas aos mais pobres, garantindo que o status quo permaneça intacto, ainda que travestido de legalidade e normalidade democrática.
Ao colocar a figura de Bolsonaro acima da lei e sugerir que somente a eleição deveria julgá-lo, Trump reforça a confusão deliberada entre democracia e impunidade, característica de regimes autoritários disfarçados de constitucionais. A retórica do ex-presidente norte-americano soma-se ao discurso de setores da mídia brasileira que tentam reduzir o conflito distributivo a “populismo fiscal” ou “guerra institucional”, ao passo que naturalizam a preservação de privilégios. Trata-se de um enredo transnacional, no qual lideranças conservadoras se apoiam mutuamente para garantir que nenhum mecanismo de redistribuição ameace seus projetos de poder e, no limite, para converter o direito mais uma vez em tecnologia de dominação apresentada como ordem.