Atitude Popular

Quando o preço de registrar a brutalidade se paga com sangue

Da Redação

Eles chamavam microfones de escudos contra o silêncio. Canetas e câmeras, instrumentos de denúncia. Na Faixa de Gaza, esses objetos são também alvos. Desde 7 de outubro de 2023, o conflito entre Israel e Hamas atravessou uma escalada de violência que tornou Gaza um dos territórios mais perigosos do mundo para quem tenta contar a história. Jornalistas, sobretudo palestinos, têm sido soterrados pela guerra — e muitos assassinados ou feridos no exercício da missão de informar. O que se sucedeu nesses quase dois anos é um massacre da verdade. Uma tragédia que atinge não só o corpo de quem reporta, mas a própria memória do que é humano.

Anas Al-Sharif — a câmera que virou alvo

Correspondente da Al Jazeera, Anas Al-Sharif e quatro colegas foram mortos quando um míssil israelense atingiu a tenda de jornalistas montada ao lado do hospital Al-Shifa, em Gaza Cidade. O ataque destruiu o que restava de uma estrutura improvisada usada pela imprensa para registrar a entrada de feridos. Israel afirmou tratar-se de “erro operacional”. Para os que conheciam Al-Sharif, foi assassinato premeditado: ele era uma das vozes mais ouvidas na denúncia das ações israelenses e havia sido ameaçado semanas antes.

Mariam Dagga — a mãe que virou mártir da verdade

Freelancer da Associated Press, Mariam Dagga registrava as cenas do hospital Nasser, em Khan Younis, quando um bombardeio atingiu o prédio. Suas últimas imagens mostram médicos tentando reanimar uma criança coberta de poeira. Horas depois, ela estava entre os mortos. Tinha 29 anos e um filho pequeno.

Yahya Sobeih — o repórter que não conheceu a filha

Yahya Sobeih, repórter de Gaza City, foi morto no mesmo dia em que sua filha nasceu. Cobria os efeitos de um bombardeio no bairro de Al-Rimal quando um estilhaço atravessou seu peito. Seus colegas contam que ele trabalhava havia 36 horas sem dormir.

Ibrahim Hajjaj — fotógrafo da dor

O fotojornalista Ibrahim Mahmoud Hajjaj morreu em 30 de julho de 2025, enquanto documentava os escombros de prédios residenciais no bairro de Al-Daraj. Ele havia publicado, dias antes, uma sequência de fotos que mostrava um pai abraçado ao corpo da filha. Foi morto com a câmera nas mãos.

Essas vidas, tão singulares, se somam às centenas de outros nomes apagados das manchetes. Jornalistas locais, radialistas comunitários, jovens voluntários que transmitiam imagens por celulares — todos integravam o esforço coletivo de impedir o apagamento de Gaza.


O genocídio informativo

As mortes de jornalistas em Gaza não são danos colaterais: são parte de uma política de silenciamento. O padrão é claro. Bombardeios sistemáticos a redações, torres de telecomunicação e escritórios de imprensa. Negação de vistos a correspondentes estrangeiros. Censura de sinal de internet.

Organizações internacionais afirmam que Israel tem utilizado o discurso da “segurança nacional” como pretexto para deslegitimar repórteres palestinos, rotulando-os como “terroristas” sem provas. Em alguns casos, os nomes dos mortos apareceram em listas de “alvos suspeitos” divulgadas por porta-vozes militares israelenses antes de suas mortes.

A destruição da imprensa é, em si, uma arma de guerra. Quando não há jornalistas, não há registros; quando não há registros, não há crimes; e sem crimes documentados, a impunidade reina.


A dor invisível por trás da lente

Ser jornalista em Gaza é viver sob permanente estado de luto. Eles dormem em redações improvisadas, com celulares presos à bateria de carros, e escrevem entre sirenes. Não há coletes que os protejam. Não há fronteiras que os salvem.

A morte é o risco de cada cobertura, mas também o motor de cada reportagem. Muitos escrevem sabendo que talvez aquele texto seja o último. Há vídeos em que correspondentes fazem transmissões com voz embargada, relatando o bombardeio que destruiu suas próprias casas e matou suas famílias — e, minutos depois, voltam ao ar para contar a história de outro massacre.

Essa resiliência é o último bastião contra o apagamento. Gaza é hoje o coração do jornalismo ético — não o que busca neutralidade diante da barbárie, mas o que se recusa a aceitar o extermínio como normalidade.


O preço da verdade

Aqueles que defendem Israel dizem que os jornalistas mortos estavam “no lugar errado, na hora errada”. Mas a verdade é mais cruel: o lugar errado, para o sionismo genocida, é qualquer espaço onde a verdade se revele.

As imagens que escapam do cerco militar — crianças mutiladas, hospitais devastados, campos de refugiados em chamas — são um ato de resistência. Cada fotografia publicada é um documento contra o esquecimento. É por isso que eles são perseguidos, visados e mortos.

Matar jornalistas é tentar matar o olhar do mundo. Mas o que escapa das lentes se torna inapagável: imagens que cruzam fronteiras, vídeos que viralizam, vozes que ecoam. Gaza, sitiada e destruída, ainda fala — e fala alto — por meio dos mortos que continuam vivos em sua obra.


O mundo que se cala

A indiferença global diante desse genocídio informativo é uma ferida moral. Organizações de direitos humanos alertam há meses que Israel viola deliberadamente as Convenções de Genebra, atacando civis e jornalistas protegidos por estatutos internacionais. Ainda assim, nenhuma corte internacional conseguiu responsabilizar o Estado israelense.

As grandes potências que se dizem defensoras da liberdade de imprensa permanecem em silêncio cúmplice. Quando o jornalista é palestino, a comoção se dissolve em tecnicalidades diplomáticas.

Essa seletividade no valor da vida humana é o retrato mais perverso do colonialismo contemporâneo: o sofrimento do Sul Global só é considerado tragédia quando interessa ao Norte.


Os que restam — e o dever de memória

Mesmo sob bombardeios, ainda há jornalistas transmitindo de Gaza. São poucos, exaustos, famintos. Mas continuam. Eles sabem que se pararem, o mundo parará de ver.

Os que morreram deixaram um legado: o compromisso de nunca permitir que o horror se normalize. Suas câmeras, muitas vezes recuperadas dos escombros, contêm as últimas imagens de pessoas que não existem mais. Esses arquivos são agora provas — documentos de um genocídio que tenta se esconder sob o nome de “autodefesa”.

Cada jornalista morto em Gaza é uma voz do mundo silenciada. Mas também é uma semente: sua coragem inspira outros a continuar.


Conclusão — O direito de olhar

A guerra em Gaza não é apenas a destruição de um povo. É a tentativa de destruir a capacidade humana de olhar para o sofrimento e reconhecê-lo como injustiça. Os jornalistas mortos são mártires dessa luta — não apenas pela Palestina, mas pela verdade universal.

O genocídio sionista tenta apagar vidas e memórias. O papel do jornalismo é o de não permitir.
Os mortos de Gaza não precisam de piedade; precisam de continuidade.
Enquanto houver alguém disposto a contar suas histórias, eles continuarão vivos.

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