O novo governo Trump opera uma captura institucional sem precedentes: militariza o DHS, reconfigura o Estado sob dogmas religiosos e transforma a tecnologia em instrumento de obediência coletiva.
Por Reynaldo Aragon
A guerra híbrida chegou ao coração do império. O Project 2025 é mais que um plano — é um script de dominação civilizacional. No interior dos EUA, o Estado liberal é substituído por um sistema de controle algorítmico e fanatismo teológico. A democracia americana, enfim, foi hackeada por dentro.
O Retorno da Sombra
Os Estados Unidos de 2026 vivem uma transformação que não se faz em golpes de Estado, mas em atualizações de sistema. O país que durante um século vendeu ao mundo a promessa da democracia liberal tornou-se o protótipo do autoritarismo digital. O fascismo do século XXI não usa botas nem censura jornais — ele opera em rede, fala a linguagem da eficiência e se apresenta como gestão. É um poder que não destrói as instituições, mas as reprograma; que não cala as vozes, mas as confunde; que não proíbe o pensamento, mas o satura. Sob o pretexto da liberdade, o império do MAGA ergue uma nova forma de dominação: o TechnoReich 4.0, um regime híbrido em que fé, tecnologia e mercado se fundem na administração da obediência.
Esse novo autoritarismo não nasce do vazio. Ele é o produto de décadas de erosão institucional, do esgotamento do liberalismo e da fusão entre fundamentalismo religioso e poder corporativo. O trumpismo soube canalizar a frustração das massas empobrecidas e o medo das elites em um mesmo projeto messiânico: restaurar a “América verdadeira”. Essa promessa de redenção política é o que dá forma à sua estrutura simbólica — uma religião civil onde o líder é o profeta, a nação é o templo e o inimigo é qualquer um que duvide da narrativa. O fascismo 4.0 nasce desse casamento entre ressentimento e fé, agora amplificado por algoritmos que transformam ódio em engajamento e crença em capital político.
O TechnoReich não é o retorno de um passado sombrio, mas o nascimento de algo mais sofisticado. Ele não precisa abolir a democracia, apenas transformá-la em espetáculo. As eleições continuam, a imprensa publica, os tribunais funcionam — mas tudo perdeu substância. A realidade política se tornou uma simulação permanente, sustentada por propaganda algorítmica e polarização fabricada. O poder real migrou para o subterrâneo das infraestruturas digitais e para os gabinetes das corporações que controlam dados, segurança e informação. No século XX, o fascismo exigia controle das ruas; no XXI, basta o controle dos fluxos.
O resultado é uma forma de totalitarismo compatível com a linguagem da liberdade. A dominação não se impõe de fora, ela é internalizada — um processo que mistura vigilância, desejo e fé. A ideologia do “livre mercado” e a teologia do “livre arbítrio” convergem em um mesmo dogma: cada indivíduo é responsável por sua própria servidão. O novo autoritarismo não precisa de censura, porque cada um aprende a se autocensurar. A guerra cultural e a guerra informacional se fundem em um mesmo campo de batalha: a mente. E, nesse campo, o império americano é o primeiro a transformar o controle cognitivo em política de Estado.
O que se ergue no coração dos EUA não é mais uma república, mas uma plataforma. E como toda plataforma, ela é regida por códigos invisíveis, protocolos, métricas e doutrinas. A política foi convertida em engenharia, e o cidadão, em dado. O TechnoReich 4.0 é a institucionalização dessa mutação: o fascismo que não precisa de um ditador, apenas de um sistema operacional. A sombra que retorna não vem de fora — ela emerge do interior da própria modernidade.
A Máquina — Project 2025 e a Arquitetura do Novo Estado
Todo regime precisa de um mito e de um manual. O Project 2025 é o manual do novo autoritarismo americano — uma espécie de Mein Kampf administrativo, elaborado por centenas de ex-funcionários de Trump e coordenado pela Heritage Foundation, o mais poderoso think tank da direita cristã. São mais de 900 páginas que descrevem em detalhes como capturar o Estado por dentro, dissolver sua neutralidade e reconstruí-lo à imagem de uma teocracia corporativa. O documento não prega abertamente um golpe, mas algo mais sofisticado: a reengenharia institucional da obediência, na qual a burocracia se torna o veículo da ideologia. O fascismo do século XXI não chega por tanques, chega por planilhas.
O plano propõe substituir cerca de 50 mil servidores de carreira por quadros “politicamente alinhados” e criar um banco de dados com nomes de indivíduos fiéis à “América cristã e patriótica” — um exército burocrático de leais prontos para ocupar cada cargo, de secretarias federais a tribunais regionais. Em nome da “eficiência”, o Estado meritocrático dá lugar ao Estado missionário. Não é o fim das instituições, mas sua reprogramação. Cada agência — Educação, Justiça, Saúde, Meio Ambiente — passa a ser reinterpretada como frente de batalha moral. O Estado deixa de servir ao cidadão e passa a servir à fé. A neutralidade administrativa é tratada como heresia. A administração pública, como cruzada.
Por trás da linguagem técnica do documento — repleta de termos como accountability, governance e reform — esconde-se uma revolução silenciosa. O Project 2025 defende a centralização do poder executivo em níveis inéditos, transformando o presidente em uma figura quase monárquica. O Departamento de Justiça deve ser subordinado diretamente à Casa Branca, eliminando qualquer autonomia do procurador-geral; o Departamento de Educação deve ser “libertado das ideologias de gênero e diversidade”; e as agências ambientais devem “cessar interferências que prejudiquem o crescimento econômico”. Tudo soa administrativo, racional, pragmático. Mas o resultado é o mesmo: o desmonte completo do Estado laico e técnico — substituído por um Estado dogmático e punitivo.
O cérebro dessa operação é a Heritage Foundation, instituição que desde os anos 1970 atua como articuladora entre a direita política, o empresariado e o fundamentalismo religioso. Sob o comando de Kevin Roberts, o think tank transformou-se em um laboratório de governo paralelo, onde juristas, militares e lobistas constroem o novo arcabouço legal do autoritarismo americano. A lógica é a do “Estado paralelo legalizado”: criar estruturas administrativas que sobrevivam mesmo a trocas de poder, consolidando uma hegemonia duradoura. O que se busca não é apenas governar, mas instalar um sistema permanente de crença e comando — o “deep state” cristão do século XXI.
A genialidade sombria do Project 2025 está em sua compatibilidade com a aparência democrática. Não há tanques nas ruas nem suspensão de direitos civis. O golpe é administrativo, e o instrumento é a caneta. A dominação é exercida pela legalidade, não pela ruptura. Cada decreto, cada nomeação, cada corte orçamentário, cada mudança de critério técnico é um pixel de um mesmo mosaico autoritário. No final, a soma dessas partes resulta em um novo Estado — teocrático, vigilante, moralista e profundamente dependente do capital corporativo que o sustenta. Um regime onde o dogma substitui a lei, e a eficiência se converte em liturgia.
O TechnoReich 4.0 nasce, portanto, da fusão entre burocracia e fé, entre código e credo. O Project 2025 é a cartilha de um poder que não precisa destruir para dominar — apenas reconfigurar. Um país inteiro transformado em um software político, no qual cada função pública executa uma linha de código moral. E, como todo software, ele pode ser exportado, atualizado e escalado. É a nova forma do imperialismo: o autoritarismo administrável, que se instala pela eficiência e se perpetua pela convicção. Nos Estados Unidos de 2026, o fascismo já não marcha — ele compila.
O Braço — DHS e ICE como Instrumentos de Purificação
Todo regime precisa de um braço executor — o ponto onde a doutrina se converte em força. Nos Estados Unidos de 2026, esse papel cabe ao Departamento de Segurança Interna (DHS) e ao Immigration and Customs Enforcement (ICE), duas agências criadas após o 11 de setembro e que, sob o novo governo Trump, foram reprogramadas para funcionar como uma polícia política. O que antes era uma estrutura de defesa nacional tornou-se um mecanismo de coerção interna, voltado contra imigrantes, ativistas, jornalistas e governadores que se recusam a alinhar-se à “nova ordem”. O discurso da “segurança” foi convertido em código de obediência: um Estado que vigia, pune e purifica em nome da moral.
O DHS, originalmente concebido para coordenar respostas a ameaças externas, assumiu desde 2025 uma função inteiramente nova — a de monitorar e controlar a vida interna dos cidadãos. Com orçamentos ampliados e poderes excepcionais, a agência passou a supervisionar, em tempo real, bases de dados federais, comunicações regionais e deslocamentos civis. Já o ICE, que nasceu para lidar com imigração e contrabando, tornou-se um instrumento de intimidação política. Sob a retórica de “cumprir a lei”, a agência realiza operações urbanas de grande visibilidade: helicópteros sobrevoando bairros imigrantes, prisões em massa e desaparecimentos temporários de lideranças locais. A mensagem é clara — o inimigo está dentro. É a velha tática fascista reeditada na era digital: transformar o medo em política pública.
O novo modelo de controle se apoia em uma aliança inédita entre o Estado e o setor privado de tecnologia. Empresas como Palantir, Clearview AI, Anduril Technologies e Oracle integram o sistema de vigilância federal, fornecendo algoritmos de reconhecimento facial, análise comportamental e monitoramento preditivo. O que antes eram ferramentas de mercado, agora são armas administrativas. A fronteira entre público e privado se dissolveu: os mesmos bancos de dados usados para publicidade e consumo servem à repressão política. O ICE não precisa mais de informantes — basta acessar a nuvem. Cada dado é uma confissão; cada movimento, um indício. O totalitarismo, no século XXI, não é mais uma ideologia: é uma infraestrutura.
A eficácia dessa nova máquina repressiva está justamente em sua invisibilidade. Não há censura oficial nem prisões em massa — há vigilância difusa e medo constante. As pessoas não se calam porque são silenciadas, mas porque sentem que estão sendo observadas. É o fascismo da era do sensor: uma forma de poder que se manifesta na antecipação do comportamento. Drones, câmeras, sistemas de IA e parcerias com plataformas digitais criam um ambiente em que a suspeita é permanente. O cidadão é rebaixado à condição de potencial infrator, e o controle se exerce antes do crime. A violência se automatiza, a punição se descentraliza, e o medo se torna o principal instrumento de governo. O Estado não precisa punir — basta fazer com que todos se sintam puníveis.
Essa militarização da vida interna corroeu o próprio pacto federativo americano. Governadores e prefeitos que resistiram à presença do ICE em seus territórios foram ameaçados com cortes de verba federal e processos administrativos. As fronteiras entre estados, antes símbolo da autonomia política, perderam sentido diante da expansão de uma autoridade executiva centralizada. Pela primeira vez, o Estado federal se comporta como uma potência ocupante dentro de suas próprias fronteiras. E, como toda potência, usa o terror simbólico como método de unificação. O trumpismo transformou o medo em liturgia — cada operação do ICE é um ritual de restauração, uma encenação da pureza nacional em tempo real, transmitida ao vivo nas redes.
No fundo, o DHS e o ICE não são apenas órgãos administrativos: são mecanismos de purificação nacional. Funcionam como o braço secular de uma cruzada espiritual, legitimada por pastores, financiada por corporações e naturalizada por algoritmos. A vigilância se tornou uma forma de fé, e a obediência, um ato de redenção. Essa fusão entre segurança e moralidade inaugura o que podemos chamar de Estado tecno-messiânico — um governo que promete salvação, mas administra o medo; que fala em liberdade, mas vigia cada gesto; que defende a verdade, mas produz o simulacro. É nesse ponto que o TechnoReich 4.0 deixa de ser metáfora e se torna regime.
O autoritarismo americano do século XXI não precisa de tanques nem de censores: ele tem dados, drones e doutrinas. O DHS e o ICE são apenas o rosto visível de um sistema mais amplo — uma teocracia tecnocorporativa que transformou a segurança em fé e a vigilância em virtude. Sob o pretexto de proteger, o Estado tornou-se o próprio perigo. E quando o medo se torna método, o totalitarismo deixa de ser uma possibilidade: ele já começou.
A Alma — Religião, Sionismo e Supremacia
Nenhum império sobrevive apenas pela força. É preciso uma crença que o sustente — uma mitologia que transforme dominação em missão e violência em virtude. O novo regime americano encontrou essa base espiritual na fusão entre o cristianismo nacionalista, o sionismo político e o supremacismo branco. Essa aliança, forjada desde os anos 1990, amadureceu com o trumpismo e, sob o Project 2025, tornou-se doutrina de Estado. A fé deixou de ser assunto privado para se converter em fundamento de governança. O Deus do Velho Testamento é agora a metáfora do poder: punitivo, vigilante, territorial. Em nome dele, o país renasce como projeto messiânico, autoproclamado guardião da civilização ocidental e dos “valores cristãos”. O novo autoritarismo americano tem hino, profetas e cruzadas — falta apenas confessar que tudo isso é política.
O cristianismo evangélico, sobretudo em suas vertentes neopentecostais e dominionistas, tornou-se a espinha dorsal ideológica do trumpismo. O movimento do “Cristianismo de Guerra” (Spiritual Warfare Christianity) defende abertamente que os fiéis devem ocupar todas as esferas de poder — política, mídia, economia e exército — até que o país “se curve ao Reino de Deus”. Esse é o fundamento da chamada Seven Mountains Mandate, doutrina pregada por líderes como Paula White, conselheira espiritual de Trump, que define o Estado como instrumento divino de purificação. Sob essa lógica, a Constituição é secundária; o verdadeiro contrato social é com Deus. A lei, nesse contexto, deixa de proteger a diversidade e passa a corrigir o desvio. A moral substitui o direito. E o pecado — seja ele aborto, ateísmo ou crítica política — converte-se em crime.
O sionismo político, por sua vez, cumpre uma função geoestratégica e simbólica essencial. Ele legitima a teologia da guerra e cria um eixo ideológico entre Washington, Jerusalém e as novas direitas europeias. O apoio irrestrito a Israel não se explica apenas por interesses militares ou econômicos, mas por uma convicção escatológica: para os cristãos dominionistas, o fortalecimento do Estado israelense é parte do plano divino para a “batalha final” do Armagedom. Essa crença, profundamente enraizada na cultura política do MAGA, confere ao imperialismo americano uma aura sagrada — suas guerras não são invasões, são missões. Ao lado disso, a aliança com o sionismo serve como ponte simbólica entre os ultraconservadores cristãos e as elites financeiras globais. A fé e o capital se reconciliam em nome da segurança e da pureza.
Mas há uma terceira camada — mais sombria e subterrânea — que dá coesão ao sistema: o supremacismo branco. Embora raramente nomeado, ele é o código genético do TechnoReich 4.0. A ideia de “América verdadeira” pressupõe um corpo racial, uma genealogia imaginária. O MAGA não é apenas um movimento político; é uma nostalgia etnocultural. A demonização de imigrantes, negros, latinos e muçulmanos, a retórica da “invasão” e o fetiche da fronteira compõem a gramática simbólica dessa utopia regressiva. Na visão de mundo trumpista, o estrangeiro ameaça não só o emprego, mas a alma da nação. Por isso, a repressão do ICE e a militarização das fronteiras são mais do que política de segurança — são ritos de purificação racial. Cada deportação é uma liturgia. Cada muro, uma catedral.
Essa fusão entre fé, supremacia e tecnologia criou um novo tipo de poder espiritual — o teocapitalismo securitário. Nele, as igrejas funcionam como laboratórios de propaganda e as plataformas digitais como púlpitos globais. Sermões se tornam campanhas políticas; algoritmos, instrumentos de catequese. A religião não apenas justifica o regime — ela o programa. Os pastores falam a linguagem do marketing, e as corporações, a linguagem da redenção. O pecado é reembalado como desinformação; o inferno, como instabilidade social; o demônio, como o “inimigo interno”. O autoritarismo moral opera como software: distribui recompensas simbólicas, molda o comportamento, produz culpa e fidelidade. O fiel ideal do Reich 4.0 não é o que teme o inferno, mas o que acredita na ordem digital como vontade divina.
No interior dessa simbiose entre religião e poder, o inimigo é sempre imanente. O mal não vem de fora, mas de dentro: o crítico, o dissidente, o artista, o professor, o cientista — todos se tornam hereges em potencial. A guerra cultural é, portanto, uma cruzada permanente, uma luta espiritual travada no território da linguagem e da percepção. Cada debate moral é uma batalha de fé. Cada rede social, um campo de extermínio simbólico. O objetivo não é convencer, mas purificar; não é governar, mas salvar. A política se dissolve na teologia. O Estado se converte em igreja. E a obediência, em sacramento.
O TechnoReich 4.0, assim, é mais do que um projeto de poder — é uma cosmologia. Ele redefine o sagrado como propriedade e o pecado como desobediência. Sua promessa é messiânica: restaurar a unidade perdida, derrotar o caos, devolver a pureza à civilização. Seu método é o mesmo das antigas cruzadas, mas com novas armas: drones, algoritmos e bancos de dados. O novo fascismo americano não pede fé — ele a produz. E como todo sistema religioso fundado em medo e transcendência, ele exige sacrifícios. Sempre humanos.
O Espelho — O Fascismo 4.0 e a Era da Vigilância Total
O que se ergue hoje nos Estados Unidos não é apenas uma anomalia política — é o espelho de uma civilização exausta de si mesma. O TechnoReich 4.0 é a forma contemporânea do velho desejo de controle absoluto, agora travestido de racionalidade e liberdade. Ele nasce da fusão entre fé e código, entre capitalismo e teologia, entre medo e eficiência. Sua força está em não parecer um regime, mas uma atualização inevitável. A dominação é vendida como inovação; a vigilância, como segurança; a obediência, como virtude cívica. O fascismo contemporâneo não promete um futuro glorioso — ele promete apenas que tudo continuará funcionando. E é justamente aí que reside seu poder: no conforto da normalidade.
A engrenagem desse sistema é global. Os algoritmos que modulam o comportamento americano também operam na Europa, na Índia, em Israel, no Brasil. As mesmas fundações que financiaram o Project 2025 estão conectadas a think tanks europeus, igrejas ultraconservadoras e plataformas digitais que controlam o fluxo de informação no planeta. A ideologia do “cristianismo ocidental” se confunde com a do “mercado livre”, e ambas alimentam a nova guerra civilizacional. O inimigo, sempre difuso, muda de nome conforme o cenário: comunista, globalista, herege, woke, invasor. A guerra nunca termina, porque é ela que mantém a economia e a fé em movimento. O fascismo 4.0 é autossustentável — uma usina simbólica que transforma ressentimento em lucro e medo em energia política.
O modelo americano é exportável porque é compatível com o capitalismo de vigilância. Não há contradição entre o lucro e o autoritarismo, entre o livre mercado e o controle social. A arquitetura digital que coleta dados para vender anúncios é a mesma que identifica “ameaças à ordem”. O mesmo sistema que recomenda vídeos de oração é o que filtra opiniões políticas. A mesma IA que aprende hábitos de consumo aprende, também, padrões de dissidência. O fascismo de hoje não precisa impor nada — ele apenas organiza o mundo segundo a lógica de quem detém os servidores. A liberdade tornou-se o slogan do cárcere. O indivíduo é vigiado não porque é perigoso, mas porque é previsível. E a previsibilidade, no século XXI, é o novo nome da submissão.
Há algo de trágico e profundamente simbólico nesse retorno da sombra. O Ocidente, que construiu sua identidade sobre a ideia de progresso e razão, acaba dominado por suas próprias ferramentas. A técnica, que prometia emancipação, tornou-se o veículo do controle. A fé, que prometia consolo, tornou-se justificativa da dominação. A informação, que prometia liberdade, tornou-se matéria-prima da manipulação. O império americano é o retrato mais nítido desse paradoxo: uma sociedade hiperconectada, mas isolada; livre, mas vigiada; rica, mas espiritualmente devastada. A democracia transformou-se em interface — bonita, interativa, e completamente inútil.
O que se vê não é o colapso da democracia, mas sua emulação perfeita. As instituições continuam de pé, os discursos são feitos, as eleições acontecem. Tudo parece funcionar. Mas a substância — o sentido do comum, da solidariedade, da verdade — foi extraída. O fascismo 4.0 não precisa destruir a república; ele apenas a ocupa, como um vírus ocupa a célula. Dentro das formas democráticas, instala-se outra lógica: a da gestão do medo, a da fé como algoritmo, a do cidadão como dado. O novo totalitarismo é legal, digital e moral. Ele não se opõe ao mundo moderno — ele é o próprio mundo moderno levado à sua conclusão lógica.
E é por isso que o TechnoReich é mais do que um fenômeno político americano — ele é o destino possível de toda civilização conectada. Seu verdadeiro campo de batalha não é a rua nem o parlamento, mas o imaginário. Seu exército não veste uniformes, mas trabalha em escritórios, igrejas e plataformas. Seu dogma não é imposto, mas compartilhado. O novo fascismo é um sistema operacional, uma cultura, uma forma de vida. E como todo sistema perfeito, ele é invisível.
Quando a liberdade se confunde com o controle e a fé com o consumo, o totalitarismo já não precisa ser declarado — ele é simplesmente vivido.
O século XXI começou acreditando que a tecnologia libertaria o homem. Está terminando descobrindo que foi o contrário: o homem libertou a tecnologia para ser dominado por ela. O fascismo 4.0 não ergue colunas nem estátuas — ele se ergue em servidores, em nuvens, em dados. Seu território é o imaginário, sua economia é o medo, e sua promessa é a ordem. É o império perfeito: aquele que governa até o pensamento. E o mais inquietante é que, dessa vez, ninguém precisará resistir — bastará continuar clicando.
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