Da Redação
No auge do seu projeto “paz com tarifa”, Trump afirma que o conflito na Ucrânia “poderia ter virado uma Terceira Guerra Mundial” — enquanto prepara um encontro com Putin, flerta com “troca de territórios” e deixa Kyiv fora da sala. Um roteiro de diplomacia criativa com toques de improviso e fogo amigo.
Donald Trump acordou em modo estadista performático e garantiu que o conflito na Ucrânia “poderia ter virado a Terceira Guerra Mundial” — não fosse ele próprio, naturalmente, ter descido do Olimpo para impedir o apocalipse. No universo trumpiano, a paz se resolve com uma ligação, um ultimato no aplicativo da vez e, se nada der certo, com tarifas punitivas e ameaças de sanções secundárias. É a versão 2.0 do “art of the deal”: menos diplomacia paciente, mais megafone, e um deadline de realidade paralela. Enquanto isso, o front ucraniano segue real, pesado, e sem pausa.
A peça central desse teatro é o encontro marcado com Vladimir Putin para a próxima semana, em território “neutro” que atende por Alaska. O mandamento número um da doutrina Trump para a paz: se a guerra é na Ucrânia, por que convidar a Ucrânia? Kyiv não recebeu convite. Em política externa, isso se chama “nada sobre nós sem nós”; na tradução livre do trumpês, “nada sobre eles sem mim”. O desconforto é óbvio: transformar o país invadido em figurante de um acerto entre as duas maiores potências nucleares do planeta não parece uma receita brilhante para um cessar-fogo sólido.
Como se não bastasse, a moldura do plano inclui uma sugestão de “troca de territórios” — ideia velha, que volta e meia reaparece reembalada como pragmatismo. Na prática, é premiar agressão com prêmio imobiliário. É também bater de frente com a Constituição ucraniana e com o princípio básico de que fronteira não é ficha de pôquer. Daí a reação dura de Kyiv: negociar, sim; leiloar soberania, não.
Trump tempera a proposta com a sua arma preferida: tarifas. O mundo aprendeu, nas últimas semanas, que a “diplomacia tarifária” dele não vem com manual de instruções, mas cobra multa antecipada. O presidente americano transformou comércio exterior em bastão de política externa e foi distribuyendo pancadas: pares, aliados e terceiros — inclusive o Brasil — sentiram. A narrativa é simples: quem atrapalhar a paz segundo Trump ganha tarifa; quem topar “sua paz” ganha trégua. A sutileza fica para outra encarnação.
A estratégia também exige vilões rotativos. Ontem foram as empresas europeias, hoje é a intransigência ucraniana, amanhã pode ser o Congresso americano se travar qualquer “acordo histórico” que reconheça ganhos territoriais à Rússia. No meio disso, circulam listas de desejos, ameaças de sanções ao petróleo russo “se não houver progresso até a data X” e comparações históricas que evocam 1938 por conta própria — não pelos melhores motivos.
A ironia maior é que o discurso “eu evitei a Terceira Guerra” convive com a escalada de risco que nasce justamente de atalhos. Pressionar por um congelamento de linhas de frente sem garantias, nem verificação, nem inclusão de quem está sendo bombardeado, soa menos como paz duradoura e mais como pausa conveniente ao agressor. Em qualquer manual decente, isso não reduz tensões; adia problemas. Em alguns casos, os amplia.
Enquanto isso, quem enfrenta drones e artilharia diariamente demonstra pouca fé em milagres de 24 horas. A confiança ucraniana, hoje, não reside em geografias “trocáveis”, mas em garantias de segurança, meios de defesa e, sobretudo, em ser parte da mesa. Poderia haver conversa de alto nível com Putin? É racional tentar. O que não é racional é transformar a vítima da invasão em plateia.
Talvez o mérito mínimo do momento seja tornar explícitos os termos. Se a proposta é “paz por território”, que se diga; se é “paz por congelamento”, que se explique como se evita a próxima ofensiva; se é “paz por tarifa”, que se assuma o custo global e as retaliações cruzadas. O resto é marketing de crise. E marketing, como se sabe, não segura linha de frente.
No fim, Trump vende o pacote completo: eu, o acordo, a data, a foto e, quem sabe, o Nobel. O mundo, porém, precisa de algo menos performático e mais verificável. Paz não é título de reality show, é engenharia institucional. Sem direito internacional, sem participação de quem sangra e sem limites claros para o agressor, o que se chama de paz vira outra coisa. E essa outra coisa costuma ter nome conhecido: pausa para rearmamento.