Da Redação
Uma investigação policial em São Paulo revelou uma cadeia criminosa sofisticada de adulteração de bebidas alcoólicas, em que o metanol — substância altamente tóxica — foi incorporado ao processo de produção clandestina. O esquema envolvia postos de combustível, fábricas clandestinas, garrafas usadas, bares e adegas, e resultou em intoxicações graves, sequelas neurológicas e óbitos confirmados. De acordo com as autoridades, o funcionamento se deu por três eixos principais: a origem da substância (metanol/etanol adulterado), a falsificação de bebidas e a distribuição em pontos comerciais comuns — bares, adegas e similares.
1. A origem: combustível adulterado a partir de postos de gasolina
A investigação identificou que o metanol, que originalmente é utilizado na indústria química ou misturado a combustíveis, foi desviado por meio de postos localizados no ABC Paulista (São Bernardo do Campo, Santo André). Nesses locais, o etanol ou o combustível eram adulterados com metanol ou vendidos com alto grau de contaminação. Em seguida, esses compostos chegavam a fábricas clandestinas que os utilizavam como matéria-prima para destilados ilegais.
Relatórios periciais apontaram que concentrações de metanol acima de 40% foram encontradas — quando o limite aceitável para consumo humano é praticamente zero. As empresas envolvidas apresentavam notas fiscais falsificadas ou destino declarado distinto ao real, permitindo o desvio da substância para o circuito ilícito.
2. A produção clandestina de bebidas adulteradas
O segundo elo do esquema envolvia “fábricas” não registradas, onde o etanol adulterado era transformado em destilados — como vodcas, gins ou outros aguardentes — embalados em garrafas de reutilização, com rótulos falsificados e lacres violados. Nesse local também atuava um núcleo familiar que armazenava garrafas usadas, tambores com insumos e rotulagem clandestina. Um dos alvos da polícia foi identificado neste núcleo, em São Bernardo, onde garrafas e tambores foram apreendidos.
A logística incluía a compra de garrafas usadas, muitas vezes de estabelecimentos próximos aos postos de combustível suspeitos, o que facilitava a operação. O produto final, tudo indica, era comercializado em bares e adegas — ponto de venda ao público comum — sem qualquer controle sanitário ou tributário e com elevado risco à saúde.
3. Comercialização nos bares e adegas
O destino final das bebidas adulteradas eram estabelecimentos tradicionais: bares populares, adegas de bairro, festas universitárias e outros pontos de consumo coletivo. Pela natureza clandestina da operação, não havia registro formal de origem, o que dificultava o rastreamento pela fiscalização.
As vítimas relataram sintomas de intoxicação após consumir destilados em locais da Mooca (Zona Leste) e da Zona Sul de São Paulo, o que levou a autoridade sanitária a emitir alerta e proibir temporariamente a venda de determinados tipos de bebidas. A crise gerou pânico entre consumidores que passaram a questionar a procedência das bebidas e barzinhos relataram queda nas vendas de destilados.
4. Impactos em saúde pública e sociedade
Os efeitos do consumo de metanol são devastadores: náuseas, dor de cabeça, visão turva ou perda de visão irreversible, falência respiratória e morte em casos graves. Na fase inicial da crise, foram confirmadas múltiplas mortes e internações com sequelas neurológicas graves — cegueira, danos cerebrais permanentes.
Além dos danos individuais irreparáveis, do ponto de vista público a crise expôs falhas graves no controle sanitário, na fiscalização de insumos químicos e na cadeia de distribuição de bebidas alcoólicas. Também revelou que a ilegalidade se aproveita de lacunas — postos de combustível que vendem etanol adulterado, fábricas não regulamentadas, bares que compram por fontes não identificadas — para operar com impunidade.
5. Fatores que facilitaram o esquema
Vários elementos colaboraram para que o esquema prosperasse:
- Falta de rastreamento rigoroso dos insumos (etanol, metanol) e de quem os importa ou distribui.
- Uso de empresas de fachada ou estabelecimentos que operavam sem registro efetivo, emitindo notas fiscais falsas ou manipulando o destino das cargas.
- Mistura de setores aparentemente distintos – combustível e bebidas alcoólicas – que permitiu ocultar a real finalidade da substância.
- Rede de comercialização informal: bares e adegas que compravam sem verificar o selo, a origem ou a nota, muitas vezes atraídos por preços baixos ou fornecimento irregular.
- Consciência reduzida do consumidor sobre os riscos — muitos não imaginavam que comer ou beber algo em bar popular pudesse resultar em intoxicação grave.
6. A resposta das autoridades
Em reação, o Governo do Estado de São Paulo ativou um gabinete de crise, a Secretaria da Fazenda suspendeu cadastros de estabelecimentos flagrados, a Saúde emitiu alertas técnicos, e a Polícia Civil intensificou investigações e apreensões. Foram interditados bares, fechadas fábricas clandestinas e recolhidas amostras para perícia. Também houve monitoramento reforçado de postos de combustível suspeitos e de empresas químicas.
Apesar das medidas, especialistas apontam que a resposta exige estrutura permanente de fiscalização, rastreamento de insumos, maior integração entre as agências de combustíveis e de bebidas, além de campanhas de conscientização à população.
7. Lições e caminho para o futuro
A crise do metanol mostra que a segurança de um país passa também por insumos químicos, cadeias de valor e fiscalização invisível aos olhos cotidianos. Para evitar que tragédias como essa se repitam, é necessário:
- Reforçar o controle e autenticação dos insumos destinados à produção de bebidas e combustíveis.
- Estabelecer rastreabilidade da cadeia desde a importação ou produção até o ponto de venda ao consumidor.
- Ampliar a fiscalização de bares e adegas em periferias, verificando procedência e alertando para adulterações.
- Educar o consumidor — se desconfiar da procedência de uma bebida, evitar o consumo ou exigir nota fiscal e selo.
- Integrar políticas de saúde, segurança pública, tributação e meio ambiente para enfrentar o crime organizado que atua na interseção entre diferentes mercados ilegais.
Conclusão
O esquema que levou metanol até bebidas alcoólicas em São Paulo é uma combinação letal de negligência, ilegalidade e lucro criminoso — que partiu de postos de combustível, atravessou fábricas clandestinas e chegou aos bares comuns. Cada copo adulterado representa falha institucional, risco à saúde e uma vida que poderia ter sido preservada.
Mais do que punir os responsáveis, a sociedade exige prevenção real, controle rigoroso e uma cadeia de bebidas que funcione com transparência. Pois, enquanto o crime se esconde na sombra da nota fiscal ou do selo violado, cabe à fiscalização e à cidadania iluminar o caminho — para que nenhum copo seja um risco e nenhuma festa termine em tragédia.