Atitude Popular

EUA, o porrete geopolítico e a nova ofensiva

Da Redação

A declaração do secretário de assuntos de guerra dos Estados Unidos, Pete Hegseth — comparando cartéis latino-americanos a “uma nova Al-Qaeda” e prometendo que “serão destruídos igual” — não é apenas um verbo ruidoso de diplomacia belicista. É parte de um repertório retórico e operativo que tem implicações concretas para a soberania, a política interna e as vidas das populações latino-americanas. Longe de ser episódio pontual, o discurso inscreve-se numa estratégia mais ampla: a volta do porrete geopolítico como ferramenta de pressão e reorganização de espaços estratégicos — com consequências que beiram a neocolonização. A seguir, uma análise longa e detalhada — histórica, geopolítica e prática — sobre como esse tipo de narrativa e medidas conexas abrem caminho para intervenções, condicionamentos e controle externo da região.


1. Da “guerra às drogas” ao pretexto militar: genealogia de um instrumento

A instrumentalização do combate ao narcotráfico para justificar intervenções externas tem precedentes históricos claros. Desde meados do século XX, o tema serviu para legitimar cooperações militares, bases, transferências de capacidades e operações de inteligência em solo latino-americano. O argumento central é simples: “a ameaça transnacional” exige medidas extraterritoriais e preferencialmente lideradas pelos EUA.

Mas há um salto significativo entre ajuda técnica e patrulhamento armado. Quando um alto responsável estadunidense trata organizações criminais como inimigos da família de Al-Qaeda, a retórica sugere não apenas repressão policial — sugere guerra: operações aéreas, ataques por drones, apreensões com força letal e autorizações para operações extraterritoriais. E, historicamente, a guerra justifica a presença, e a presença cria zonas de influência.


2. O mecanismo da neocolonização por coerção: ferramentas e passos

A neocolonização moderna não repete o mapa formal de colônias; ela opera por conjuntos de instrumentos integrados. Eis os elementos que tornam possível o que se pode chamar hoje de “neocolonização por coerção”:

  1. Narrativa securitária
    • Transformar problemas sociais (violência, pobreza, tráfico) em ameaça militar externa.
    • Etiquetar grupos ou fenômenos como “terroristas” para afastá-los do regime jurídico penal comum e inseri-los no regime de guerra.
  2. Autorizações operacionais extraterritoriais
    • Operações navais/áreas marítimas patrulhadas por forças estrangeiras.
    • Autorização para agir em águas ou territórios sob soberania de terceiros sob pretexto de perseguição transnacional.
  3. Alianças e condicionamento de cooperação
    • Condicionar ajuda econômica, venda de tecnologia e acordos comerciais ao alinhamento político e à cooperação em segurança.
    • Pressão para instalação de bases, centros de comando ou uso de infraestrutura local.
  4. Ação sobre instituições locais
    • Fortalecimento de forças militares e serviços de segurança pró-ocidentais com treinamento, financiamento e assistência técnica.
    • Deslegitimação de governos ou atores que resistam — por meios diplomáticos, econômicos ou pela exposição de supostas conivências com o crime.
  5. Guerra tecnológica e financeira
    • Sanções, cortes de financiamento e bloqueios que corroem a autonomia econômica.
    • Monitoramento e controle de fronteiras digitais, fluxos financeiros e comunicações.
  6. Normalização da intervenção
    • Repetição de operações sob pretextos distintos (narcotráfico, crime organizado, terrorismo) até que a presença externa se torne rotina.

Quando articulados, esses instrumentos transformam espaços soberanos em zonas dependentes — não formalmente colonizadas, mas condicionadas nas decisões fundamentais de segurança, economia e política externa.


3. Impactos práticos — quem paga a conta

A escalada militarizada e a “parceria” assimétrica não são neutras; produzem efeitos sociais, políticos e econômicos imediatos:

  • Soberania reduzida: Estados veem suas capacidades decisórias sobre segurança e fronteiras condicionadas a agendas externas.
  • Militarização da vida civil: As operações que visam rotas de tráfico transformam comunidades costeiras e ribeirinhas em teatros de conflito; pescadores, comerciantes e populações indígenas acabam vitimados.
  • Erosão do Estado de Direito: Mais operações militares e menos ações judiciais e sociais significam prisões extrajudiciais, violações de direitos humanos e menos espaço para responsabilização.
  • Polarização interna: Governos que resistem podem ser alvo de campanha de deslegitimação; opositores que colaboram podem se tornar dependentes de apoio externo.
  • Dependência tecnológica e logística: Sistemas de vigilância, rastreamento e armamento comprados com condicionantes criam obrigações duradouras.
  • Deterioração das relações regionais: Vizinhos reagem, alianças mudam, e o continente pode fragmentar respostas coletivas.

4. Como a retórica transforma política em ação: do discurso ao ataque

Chamar cartéis de “Al-Qaeda” tem efeito performativo. A linguagem não é inocente: ela redesenha o regime jurídico (de crime comum para crime de guerra/terrorismo), amplia poderes executivos (autorizações de uso da força) e cria justificativas políticas para operações que em outros contextos seriam inviáveis. Uma vez que a narrativa “guerra contra o terrorismo” se estabelece, medidas extraordinárias — vigilância massiva, operações financeiras extraterritoriais, cooperações militares covertas — tornam-se palatáveis.

O passo a passo típico depois de tal retórica envolve:

  1. Intensificação de vigilância aérea e marítima na região.
  2. Acordos de cooperação rápida com forças locais (treinamento, inteligência, logística).
  3. Operações de interdição em águas e fronteiras: abordagens armadas, apreensões e, eventualmente, ataques letais.
  4. Pressão diplomática e econômica sobre governos que contestem a narrativa.
  5. Consolidação de centros de comando regionais e protocolos operacionais permanentes.

5. Reações prováveis e já em curso na região

A ameaça de neocolonização pela força não passa sem resposta. Entre as reações já observáveis ou previsíveis estão:

  • Diplomacia de contestação: governos soberanos levarão denúncias a fóruns multilaterais (ONU, CELAC, MERCOSUL, UNASUR/UNASUL reconfigurado) e buscarão apoio jurídico internacional.
  • Busca de contrapartidas externas: aproximação com potências que se colocam como contrapeso (China, Rússia, Índia, Turquia) em tecnologia, armas e investimentos sem condicionantes políticos.
  • Construção de mecanismos regionais de segurança: proposta de patrulhas conjuntas, marinhas regionais e protocolos próprios que limitem ações unilaterais.
  • Mobilização civil e política interna: movimentos sociais, ONGs e setores acadêmicos denunciarão violações e exigirão investigação sobre operações externas.
  • Risco de escalada militar: governos sob pressão podem responder com medidas militares defensivas, expondo a região ao confronto.

6. O preço humano: exemplos e cenários concretos

A militarização extraterritorial tem custos humanos previsíveis:

  • Vidas civis em risco: abordagens armadas no mar e incursões em comunidades periféricas aumentam risco de mortes de não combatentes.
  • Disrupção econômica local: comunidades costeiras dependentes da pesca enfrentam bloqueios, apreensões e destruição de embarcações.
  • Deslocamentos forçados: operações em zonas rurais e costeiras geram êxodo interno e crise humanitária.
  • Criminalização e estigmatização de povos: populações marginalizadas podem ser rotuladas e tratadas como cúmplices, mesmo sem provas.

Em suma: o “porrete” geopolítico paga-se com vidas, migrações e erosão de direitos.


7. Como a região pode resistir sem se submeter a outra tutela

Resistir à tentação do “protecionismo armado” exige medidas políticas concretas:

  1. Unidade diplomática regional: blocos regionais devem emitir respostas coordenadas, com protocolos claros contra ações unilaterais em águas e territórios adjacentes.
  2. Fortalecimento institucional: investir em capacidades domésticas de polícia e justiça para tratar narcotráfico como problema criminal, não apenas militar.
  3. Rastreabilidade financeira internacional: criar coalizões para blindar o sistema financeiro regional contra fluxos ilícitos sem perder soberania.
  4. Acordos de supervisão internacional: sempre que houver cooperação externa, que ela seja acompanhada por mecanismos de transparência e auditoria conjunta (parlamentos, sociedades civis).
  5. Diversificação geopolítica: ampliar parcerias econômicas e tecnológicas que não transformem países em satélites.
  6. Proteção de direitos humanos: monitoramento independente por ONGs e organismos regionais para responsabilizar eventuais abusos.

8. Pelo fim do falso dilema: segurança versus soberania

A grande armadilha que narrativas como a de Hegseth nos oferecem é o falso dilema: “ou cedemos presença externa e máxima repressão para garantir segurança, ou aceitamos caos”. A experiência histórica mostra que soluções verdadeiramente eficazes contra o crime organizado são complexas — envolvem combate à pobreza, governança, programas sociais, coordenação judicial, cooperação internacional com limites e controle — e não apenas operações militares de alto impacto.

Soberania e segurança não são inimigas. A neocolonização por coerção escolhe vender a ideia de que só com tutela externa se garante ordem; a alternativa, madura e estratégica, é construir capacidades regionais que protejam a população sem abrir mão do poder de decisão.


9. Conclusão: o porrete é parte da política — mas também é sinal de fraqueza estratégica

A retórica belicista americana contra os cartéis latino-americanos — transformando-os em “nova Al-Qaeda” — é, em muitos sentidos, o anúncio de uma política: mais presença militar, mais autorizações extraterritoriais, mais condicionamento. Se virar prática, abre as portas para formas de controle que lembram a geopolítica colonial, agora executada com drones, satélites e acordos de cooperação assimétrica.

Mas há sinais de resistência: diplomacia regional, busca por parcerias alternativas, mobilização civil e reclamações nos fóruns internacionais. A América Latina enfrenta, portanto, uma encruzilhada: ceder à lógica do porrete e perder parte de sua autonomia, ou construir — com tempo, paciência e unidade — instrumentos de soberania que resolvam problemas reais sem trocar liberdade por segurança aparente.

A escolha determinará não apenas a geopolítica do continente nos próximos anos, mas também se os povos latino-americanos serão sujeitos de sua história ou objetos de estratégias alheias.