Da Redação
Encontro previsto para 26 de outubro, à margem das cúpulas da ASEAN e do Leste Asiático em Kuala Lumpur, pode inaugurar uma trégua na escalada de tensões comerciais e diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos e abrir caminho para um roteiro de renegociação das sobretaxas impostas por Washington desde julho.
O governo brasileiro e a Casa Branca convergiram, nesta quarta-feira 22, para um mesmo recado: Lula e Donald Trump devem aproveitar a passagem por Kuala Lumpur, na Malásia, para uma reunião presencial no domingo 26. A possibilidade vinha sendo costurada desde o início de outubro, quando os dois presidentes tiveram uma conversa por vídeo considerada positiva por assessores dos dois lados. De lá para cá, diplomatas trabalharam em silêncio para construir uma janela nas agendas das lideranças que estarão na capital malaia para as cúpulas da ASEAN e do Leste Asiático, encontros que reúnem governos do Sudeste Asiático e parceiros globais.
O pano de fundo imediato é a crise das tarifas anunciadas por Washington no meio do ano, com alíquotas punitivas sobre uma cesta ampla de produtos brasileiros. Em Brasília, a medida foi interpretada como uma escalada injustificada que atingiu setores industriais e do agronegócio, com impacto em cadeias integradas e sinais de desvio de comércio. Em reação, o Planalto passou a estruturar uma estratégia em duas frentes. A primeira, política, buscou estabilizar o diálogo de alto nível e conter efeitos colaterais na cooperação bilateral. A segunda, técnica, mapeou produtos, rotas logísticas e frestas regulatórias para construir uma proposta de revisão faseada das alíquotas, condicionada a metas de reequilíbrio de fluxo e compromissos de investimento no território brasileiro.
O eventual encontro de domingo tem valor simbólico e prático. Simbólico, porque seria o primeiro tête-à-tête desde a adoção das sobretaxas e marcaria um gesto de descompressão na relação, afetada também por divergências sobre democracia, redes sociais e o legado do bolsonarismo. Prático, porque poderá destravar uma mesa de negociação com cronograma e escopo definidos, algo que fontes de ambos os governos vinham esboçando de forma preliminar. Em conversas preparatórias, assessores discutiram hipóteses de exclusões temporárias para segmentos com cadeias já comprometidas, a criação de grupos de trabalho em comércio e investimentos e um canal técnico para dirimir controvérsias rapidamente, evitando que disputas se transformem em crises políticas.
A escolha da Malásia como palco não é casual. Como anfitrião da 47ª cúpula da ASEAN, o país busca posicionar-se como ponte entre grandes potências e economias emergentes em um momento de deslocamento das cadeias industriais para o Sudeste Asiático. Para o Brasil, o giro pela região tem objetivos próprios, incluindo a abertura de mercados, a atração de investimentos em manufaturas e semicondutores e o estreitamento de relações com países que, juntos, somam centenas de milhões de consumidores. A coincidência de lideranças em Kuala Lumpur cria a circunstância ideal para uma diplomacia de resultados, que evite comunicados vagos e traduza a boa vontade em tarefas concretas.
Ainda que a sinalização pública seja favorável, há obstáculos. Em Washington, o ambiente interno é pressionado por agendas protecionistas e por leituras de segurança econômica que ganham força no setor de tecnologia, com foco especial em chips e cadeias críticas. No Brasil, setores impactados pela tarifa pedem respostas céleres, enquanto a equipe econômica defende previsibilidade regulatória e uma rota crível de redução gradual das sobretaxas. A equação passa pela definição de salvaguardas que acomodem as prioridades dos dois países sem produzir choques adicionais em cadeias regionais.
A diplomacia brasileira aposta em três “entregáveis” possíveis. Primeiro, um compromisso político de alto nível para negociar a reversão escalonada das tarifas, com metas e prazos. Segundo, um pacote de isenções pontuais, imediatamente aplicáveis a linhas onde o dano é mais agudo. Terceiro, um corredor de investimentos com salvaguardas de conteúdo local e transferência tecnológica, principalmente em segmentos industriais e digitais. Ao mesmo tempo, o Planalto busca blindar frentes sensíveis da agenda doméstica, como a regulação de plataformas e o combate à desinformação, temas em que Brasília e Washington têm leituras distintas e que, se invadirem a mesa comercial, podem contaminar o processo.
O entorno regional adiciona variáveis. A ASEAN chega a Kuala Lumpur discutindo não apenas integração econômica, mas também a pacificação de litígios no próprio Sudeste Asiático. Para os Estados Unidos, o engajamento na região cumpre função estratégica; para o Brasil, é oportunidade de diversificar inserção, ampliar exportações e reduzir fragilidades expostas em disputas comerciais recentes. Nessa moldura, o encontro com Trump deixa de ser um ato isolado e passa a compor um movimento mais amplo de política externa e de política industrial.
Se a reunião ocorrer e produzir um roteiro de trabalho, o dia seguinte importará tanto quanto a foto. O desafio será transformar a de-escalada em prazos mensuráveis, com monitoramento público de metas e cronograma de revisão tarifária. A diplomacia está consciente de que os mercados e as cadeias produtivas reagem a sinais concretos: datas, listas, portarias, licenças, exclusões temporárias. A ausência desses elementos tende a devolver a relação ao ruído, com custos para produtores e consumidores dos dois lados. Por isso, Brasília busca amarrar, já na Malásia, o desenho de grupos técnicos, a periodicidade das reuniões e a forma de publicidade dos avanços, preservando confidencialidade quando necessário, mas assegurando transparência suficiente para dar previsibilidade ao setor privado.
Em síntese, Kuala Lumpur pode inaugurar uma nova fase. As condições objetivas estão dadas: vontade política declarada, agendas compatíveis na busca por previsibilidade e um ambiente multilateral favorável a acordos setoriais. O restante dependerá da capacidade de as equipes converterem o gesto político em engenharia diplomática e regulatória, reduzindo as tarifas com bússola, cronograma e métricas claras.


