Atitude Popular

A Tempestade sobre as Ruínas

O que acontece quando a emergência climática invade a crise civilizacional

Por Reynaldo Aragon

Quando o colapso ecológico encontra a falência moral e política de um mundo à beira do abismo, nasce uma tempestade perfeita. Este ensaio vasculha as profundezas dessa convergência, onde o futuro se decide entre a barbárie e a reinvenção.

E quando as mudanças climáticas se somarem à crise civilizacional? Talvez seja neste ponto, e não em outro, que o ser humano seja forçado a encarar o que sempre temeu nomear: que seu império sobre a Terra, forjado na sanha de extrair, explorar e subjugar, pode ruir não por falta de tecnologia, mas por excesso de arrogância. Pois não haverá algoritmo, satélite ou moeda forte capaz de conter a fúria de um planeta reconfigurado, quando a atmosfera se tornar ácida, os rios secarem, os ventos não respeitarem mais estações, e os ciclos de vida entrarem em convulsão.

Imagine um mundo onde a seca prolongada transforme grandes metrópoles em arquipélagos de sobrevivência, onde a água seja vigiada com metralhadoras, onde o alimento se converta em arma, e onde cada fronteira se torne trincheira contra a miséria migrante. Imagine as ondas de calor não mais como exceção, mas como ritual de morte cíclica, ceifando vidas ao ritmo de cifras que jamais irão aparecer nos telejornais. Imagine as chuvas tão intensas que dissolvam bairros inteiros em poucos minutos, rasgando encostas, pontes, cidades, memórias.

Este não é um delírio distópico. É uma projeção material, calculada, quantificada, medida — sustentada por todas as evidências da ciência planetária que se acumularam nas últimas quatro décadas. Mas ela se torna ainda mais sombria quando encosta, como fera faminta, na carcaça frágil de um mundo que já vem derretendo por dentro: democracias esgarçadas, povos colonizados, elites cada vez mais predatórias, valores comunitários transformados em pó pelo consumismo narcótico, e uma violência ideológica que nos acostuma a aceitar a desigualdade como destino.

Nada disso ocorrerá em um planeta socialmente estável e politicamente pacífico. Não haverá transição suave quando as colheitas falharem ao mesmo tempo, em que explodem golpes de Estado, guerras híbridas e redes de ódio projetadas por máquinas algorítmicas a serviço do lucro. A emergência climática chegará, e já chega, a um mundo fraturado, doente, sem compaixão — onde cada catástrofe física ecoará como catástrofe moral.

A cada grau de aquecimento que se soma, a cada estação perdida, a cada floresta transformada em fumaça, dilata-se também o abismo civilizacional que a humanidade cavou com as próprias mãos. E quando os sinais se tornarem impossíveis de ignorar — quando a floresta amazônica colapsar de vez, quando as monções errarem de endereço, quando as calotas polares se transformarem em mar aberto — não será apenas a temperatura que terá mudado. Terá mudado a própria gramática da vida, o tecido mínimo de solidariedade e confiança que sustenta qualquer civilização.

Este ensaio começa, portanto, num lugar incômodo: a interseção entre o planeta em colapso e a sociedade em vertigem. É nesta junção que se produz o ponto de ruptura histórico, onde a crise ecológica se torna crise civilizacional, e vice-versa. É neste ponto que devemos mirar, sem medo, pois dele depende não só o futuro do clima, mas a própria possibilidade de humanidade.

A urgência planetária e o colapso civilizacional.

Vivemos, de fato, o crepúsculo de uma civilização que, ao negar os limites do planeta, começou a corroer também os limites da própria dignidade humana. O colapso climático não pode ser lido como um acidente da natureza: ele é a consequência histórica de um projeto civilizatório que fez do crescimento sem fim um dogma sagrado, da mercantilização de tudo uma promessa de redenção, e da exploração sem escrúpulos a engrenagem fundamental do progresso. Por trás de cada grau extra na atmosfera, há séculos de pilhagem colonial, há impérios que se ergueram sobre corpos escravizados e florestas queimadas, há fronteiras forjadas a pólvora para garantir a circulação de mercadorias.

A Terra respondeu. Não por capricho, mas pela lógica inescapável das leis biofísicas que regem sistemas vivos. Aquilo que queimamos retorna, aquilo que destruímos cobra juros, e aquilo que desprezamos se revolta — não em termos morais, mas no rigor das reações químicas e físicas que mantêm a estabilidade do clima. A aceleração do aquecimento global, o colapso da biodiversidade, a acidificação dos oceanos e o envenenamento dos ciclos da água não são sinais isolados: são a sinfonia trágica de um sistema planetário ultrapassando os limites de resiliência, amplificada por um modelo econômico que transformou a própria natureza em cifra contábil.

Mas a crise não se restringe à ecologia. Ela se infiltra no coração do contrato social, pois se revela incapaz de manter vivos os laços comunitários mínimos. Quando o clima entra em ruptura, a sociedade se rasga: aumenta a competição por alimentos, água, refúgio; ressurgem fronteiras armadas; recrudescem racismos, misoginia e violência contra os mais pobres. O negacionismo que grassa pelo mundo não nasce apenas de ignorância — nasce de um medo ancestral de encarar que a engrenagem da qual muitos se beneficiam tornou-se um instrumento de morte. E ao negar o colapso, negamos também qualquer chance de transformá-lo.

É nesta combinação explosiva que reside a urgência histórica: não falamos de um evento natural, mas de uma convulsão civilizatória que já se manifesta nos corpos empobrecidos, nos territórios envenenados, nos refugiados empilhados em campos de exclusão, nas guerras silenciosas pelo controle da água. Não existe solução tecnocrática que isole a crise climática da crise social — elas são inseparáveis.

Por isso, a urgência não pode ser medida apenas em partes por milhão de CO₂, mas em pedaços de humanidade que estão sendo triturados agora, diante de nossos olhos. Cada segundo de atraso na transição ecológica se converte em vidas sacrificadas, e cada minuto de hesitação serve ao prolongamento de um poder que prefere morrer abraçado à sua riqueza do que repensar as bases de sua própria existência.

Este ensaio parte dessa premissa: não existe clima saudável num mundo socialmente apodrecido, e não existe sociedade justa num planeta biologicamente devastado. A urgência planetária é, pois, o grito simultâneo de todos os sistemas vivos — ecológicos, sociais, simbólicos — chamando pela reinvenção radical do modo de viver e do modo de nos relacionarmos. E talvez seja exatamente por isso que, embora muitos prefiram tapar os ouvidos, a voz do colapso soe cada dia mais alto, cada dia mais inegável, cada dia mais próximo.

Mudanças climáticas: a anatomia da catástrofe.

Há algo de terrivelmente simples no fenômeno das mudanças climáticas, embora sua complexidade assuste: basta acumular gases na atmosfera, e o equilíbrio térmico do planeta cede. Não é uma questão de crença, tampouco de opinião. É física elementar, mensurada, observada, replicada em laboratórios e em satélites. É ciência, e ciência da mais rigorosa. Desde que a revolução industrial elevou exponencialmente a concentração de dióxido de carbono, metano e óxidos nitrosos, a Terra entrou em um regime climático que jamais havia conhecido no Holoceno — a era de relativa estabilidade que permitiu a emergência de cidades, agricultura, cultura escrita e, em última instância, a própria civilização.

Hoje, a concentração de CO₂ atmosférico ultrapassa 420 partes por milhão — valor não registrado há pelo menos 3 milhões de anos, segundo testemunhos de gelo e análises de sedimentos. Essa cifra solitária carrega o prenúncio de um abalo: o sistema climático, interdependente e não-linear, responde a cada fração de grau com reações em cadeia. O degelo do Ártico libera metano preso no permafrost; o metano amplifica o efeito estufa; o aquecimento acelera a evaporação de oceanos, alterando correntes atmosféricas; essas correntes redistribuem a energia global de forma caótica, e assim se multiplicam secas extremas, chuvas diluvianas, ondas de calor mortais e furacões cada vez mais violentos.

Não se trata de um filme apocalíptico: trata-se do diagnóstico da comunidade científica internacional, expresso nos relatórios sucessivos do IPCC e confirmado pelas agências espaciais que vigiam a vitalidade do planeta. O aumento médio de 1,5 °C sobre os níveis pré-industriais, já praticamente alcançado, carrega em si a marca de irreversibilidades. Algumas geleiras jamais voltarão. Alguns recifes jamais se regenerarão. Alguns sistemas de monções já começaram a perder a previsibilidade que sustentava milhões de agricultores na Ásia e na África.

Entender a anatomia da catástrofe é perceber que ela não opera de forma linear, mas em saltos, do mesmo modo que um organismo doente não morre em câmara lenta, mas por falências múltiplas que se sobrepõem. O clima global funciona com pontos de inflexão — tipping points — que, uma vez ultrapassados, podem reconfigurar completamente as condições de habitabilidade do planeta. O colapso da Amazônia como sumidouro de carbono, a falha do sistema de correntes do Atlântico Norte, a fusão irreversível da calota da Groenlândia — cada um desses eventos representa não um drama regional, mas um golpe mortal na estabilidade climática planetária.

Por isso, falar em mudanças climáticas não é falar apenas de “aquecimento”, mas de uma transformação estrutural na base energética que mantém a Terra habitável. É uma anomalia que se expande como câncer, contaminando solos, mares, ventos, dinâmicas ecológicas. É também, em termos filosóficos, a revelação do nosso próprio erro civilizacional: acreditar que se poderia violentar as condições mínimas de vida sem colher o retorno brutal dessa violência.

Este não é um ponto de vista. É um laudo. E quem não quiser enxergar a anatomia desta catástrofe terá de lidar, em breve, com sua face mais brutal: a falência do mínimo necessário para a dignidade humana. Pois não existe civilização possível quando a temperatura rompe a tolerância fisiológica dos corpos, quando a água escasseia, quando a comida se torna inacessível e quando as doenças tropicais avançam para latitudes outrora temperadas. O clima é a moldura de tudo. Sem clima, não há cultura, não há economia, não há política — não há sequer vida em comum.

E é neste reconhecimento, tão simples quanto devastador, que devemos apoiar o resto de nossa reflexão. Porque se não entendermos a anatomia da catástrofe, não seremos capazes de sequer imaginar saídas reais.

O encontro explosivo: clima + crise civilizacional.

Talvez a maior falácia do nosso tempo seja imaginar que a mudança climática será um teste isolado, um acontecimento natural que ocorrerá num mundo calmo, governado por instituições sólidas e pactos sociais respeitados. Essa ilusão — herdada de um pensamento tecnocrático que insiste em separar “natureza” e “sociedade” — fracassa diante da evidência de que o colapso ambiental não chegará a um planeta estável, mas a uma civilização já lacerada, cansada, saturada de desigualdades e dominada por poderes cada vez mais autorreferentes.

O aquecimento global não se sobrepõe a um solo firme. Ele se infiltra num corpo social adoecido: marcado por democracias frágeis, populismos autoritários, desigualdades extremas, polarização violenta e redes digitais que amplificam ódio, medo e mentira com precisão algorítmica. Quando a emergência climática se combinar a este caldeirão de ressentimentos e disputas, estaremos diante de algo mais que uma crise ambiental: veremos um processo de desorganização civilizatória, uma implosão sistêmica onde cada catástrofe física ecoará como catástrofe moral e política.

Este é o ponto crucial, muitas vezes negligenciado pelas análises frias de relatórios internacionais: o risco de colapso composto. Um termo técnico, mas de implicações quase filosóficas. O colapso composto surge quando múltiplas crises — climáticas, econômicas, institucionais, informacionais — interagem, gerando efeitos cumulativos e sinérgicos. Por exemplo, uma seca extrema pode arruinar a produção agrícola de uma região, provocando fome; a fome se converte em conflito social; o conflito desorganiza o Estado; o vácuo de poder alimenta milícias ou grupos terroristas; e essa insegurança, por sua vez, impede políticas de adaptação ao clima, criando um círculo vicioso de autodestruição.

Seus contornos já podem ser vislumbrados. Veja o norte da África, onde a desertificação, aliada a governos frágeis e interesses neocoloniais, empurrou populações inteiras para rotas de migração desesperada, alimentando regimes xenófobos na Europa. Veja o sudeste asiático, onde tempestades cada vez mais violentas pressionam comunidades pesqueiras empobrecidas, aumentando a disputa por recursos e a tensão geopolítica entre superpotências. Veja a própria América Latina, onde inundações, secas e queimadas se somam a guerras informacionais e a ataques à democracia, alimentando um ressentimento profundo que nutre o fascismo tropical.

Para fundamentar essa visão, podemos recorrer a metodologias de cenarização integrada, como os Shared Socioeconomic Pathways (SSP) e os Representative Concentration Pathways (RCP), que projetam não só trajetórias de emissões, mas também trajetórias sociais. Esses modelos revelam que, num cenário de aquecimento acima de 2 °C somado a desigualdades crescentes, a probabilidade de falências institucionais, guerras civis, colapsos migratórios e crises de governança sobe de modo exponencial (O’Neill et al., 2017; IPCC, 2022). Ou seja, a ciência climática já reconhece que clima e civilização são vasos comunicantes, e que as chamadas “tipping points” sociais se aproximam tão perigosamente quanto os pontos de não retorno ambientais.

O encontro entre clima e crise civilizacional não é apenas um tema para conferências acadêmicas. É o campo de batalha real do século XXI, onde se decidirá se ainda podemos cultivar valores de solidariedade, equidade e autonomia, ou se assistiremos a uma era de neofeudalismo cibernético, onde corporações e elites armadas controlarão recursos vitais em ilhas de privilégio, enquanto a maioria se afoga — literal e metaforicamente — em mares de desesperança.

Não há neutralidade possível. O aquecimento global, ao encontrar sociedades fragilizadas e elites dispostas a tudo para manter seus privilégios, potencializa dinâmicas de dominação e violência, dissolvendo as últimas garantias de dignidade que nos restam. Por isso, falar em mudança climática não é — e nunca será — apenas falar de gases na atmosfera, mas de relações de poder, de controle, de guerra, de quem viverá e de quem morrerá.

E se não compreendermos esse encontro explosivo, seguiremos repetindo soluções parciais e técnicas, enquanto o mundo real se transforma num tabuleiro de ruínas, onde a própria ideia de civilização será colocada em xeque.

Os rostos do negacionismo: quem lucra com a dúvida.

Negar a mudança climática não é, em essência, um gesto ingênuo ou fruto de ignorância isolada. É, historicamente, um projeto político-econômico cuidadosamente arquitetado para proteger privilégios, retardar transformações estruturais e garantir a perpetuação de sistemas de poder baseados em combustíveis fósseis, concentração de renda e colonialismo ambiental. O negacionismo se tornou, nas últimas décadas, uma verdadeira indústria, operada por think tanks, grupos de lobby, partidos ultraconservadores e corporações que enxergam no colapso climático não uma ameaça, mas uma oportunidade para lucrar com a catástrofe.

Desde a virada dos anos 1980, documentos hoje tornados públicos revelam como gigantes do petróleo e do carvão financiaram campanhas de desinformação para semear dúvida e confusão. O método é sofisticado: não se trata de negar frontalmente a ciência, mas de relativizá-la, de diluir sua autoridade, de introduzir ruídos e teorias conspiratórias que tornem impossível, para o cidadão comum, distinguir fato de mentira. É o mesmo roteiro aplicado pela indústria do tabaco: gerar incerteza estratégica para atrasar regulações.

No Brasil e na América Latina, esse negacionismo encontrou terreno fértil ao se acoplar a projetos políticos autoritários, que identificaram no discurso antiecológico uma forma de mobilizar ressentimentos populares contra supostos “inimigos externos”: ONGs, ambientalistas, acadêmicos, povos indígenas. O discurso do negacionismo climático se articula, assim, com o ódio de classe e o racismo ambiental, ao rotular políticas de transição ecológica como “ameaças comunistas” ou “armadilhas globalistas”.

Os rostos desse negacionismo são conhecidos: consórcios fósseis, lideranças de extrema-direita, influencers digitais pagos para desacreditar dados, parlamentares financiados por agronegócios predatórios, e até supostos especialistas acadêmicos que vendem sua autoridade a serviço da dúvida. Eles aparecem travestidos de defensores da liberdade, mas na prática defendem apenas a liberdade de seguir lucrando, ainda que o preço seja a morte de milhões e o colapso de ecossistemas inteiros.

Essa rede de desinformação opera como verdadeira guerra psicológica, minando a confiança na ciência, destruindo pontes de diálogo e paralisando a ação coletiva. Há técnicas cuidadosamente estudadas para tal objetivo: apelar à liberdade individual, demonizar impostos sobre carbono, ridicularizar consensos científicos, ou fomentar teorias conspiratórias sobre “engenharia do clima” como forma de manipulação populacional. São discursos que penetram as redes sociais através de algoritmos que priorizam choque, indignação, polêmica — fertilizando a ignorância e a violência.

A quem interessa essa confusão? Às velhas oligarquias fósseis, claro, mas também aos novos autoritarismos digitais, que lucram com a fragmentação social. O negacionismo climático funciona, assim, como pilar de um projeto maior: manter o status quo de desigualdade e exploração, blindando elites contra qualquer reforma profunda que questione sua riqueza acumulada.

Por isso, é ilusório imaginar que o combate ao negacionismo será apenas um debate científico. Trata-se de uma batalha política, cultural e comunicacional, onde a verdade precisa disputar espaço com narrativas de ódio habilmente produzidas para paralisar consciências. A dúvida programada, neste caso, não é apenas estratégia de mercado — é instrumento de dominação.

Enfrentar essa arquitetura da dúvida exige coragem para nomear interesses, expor financiadores, revelar as tramas globais e locais que alimentam o ceticismo industrializado. E, sobretudo, exige devolver ao debate climático sua dimensão de justiça social, pois enquanto o discurso negacionista prosperar, os mais pobres e os territórios colonizados continuarão pagando, sozinhos, a conta do fim do mundo.

América Latina: laboratório da tragédia e da resistência.

Poucas regiões do mundo encarnam, com tanta clareza, a contradição entre riqueza ecológica e brutalidade histórica quanto a América Latina. Aqui, os biomas mais biodiversos do planeta coexistem com índices de desigualdade colonial ainda vivos, cicatrizes abertas por quinhentos anos de pilhagem, genocídio e violência territorial. E é precisamente nesse território que a mudança climática exerce sua força de modo mais cruel e simbólico: a floresta amazônica ameaçada de colapso, o Cerrado convertido em deserto químico de monoculturas, o Pantanal em chamas, as montanhas andinas perdendo suas geleiras ancestrais — enquanto populações inteiras seguem à margem do poder político e econômico, condenadas a arcar com o custo de um desastre que não provocaram.

A América Latina, nesse sentido, é um laboratório da tragédia. O aquecimento global não cria a desigualdade — mas a amplífica, a torna mais letal, a coloca em combustão. Os impactos climáticos chegam primeiro aos corpos mais vulneráveis: ribeirinhos expulsos pela seca, quilombolas desalojados por enchentes, indígenas envenenados por mercúrio em territórios invadidos, periferias urbanas assoladas por enchentes e deslizamentos. Cada evento extremo revela, como se fosse um raio-x, as veias abertas de uma América Latina que nunca se libertou plenamente das lógicas coloniais.

Mas este mesmo chão, regado a suor e memória de luta, também faz brotar resistências radicais. Comunidades tradicionais amazônicas que reinventam modos de vida agroflorestais; camponeses que apostam na agroecologia como insurreição contra o agronegócio predatório; redes de povos indígenas que conectam espiritualidade, política e ciência para defender territórios e modos de ser. Essa resistência não é apenas local: ela carrega lições para o mundo inteiro, pois sinaliza que não há salvação possível sem retomar o vínculo entre terra, comunidade e dignidade.

No plano político, a América Latina também é um palco de disputas cruciais. Por um lado, governos progressistas tentam reconstituir políticas de preservação, proteger biomas, garantir soberania alimentar e redesenhar o papel da região na geopolítica climática global. Por outro lado, forças conservadoras, aliadas a interesses fósseis e latifundiários, reativam discursos negacionistas e autoritários, transformando a destruição ambiental em bandeira de uma suposta “liberdade”. É aqui que a guerra cultural se soma à guerra ecológica, num jogo de poder que pode definir não apenas o destino latino-americano, mas o destino climático do planeta — pois a Amazônia, o Cerrado, a Patagônia e o Gran Chaco não pertencem a bolhas nacionais: eles são reguladores do clima global, zonas de estabilidade biogeoquímica sem as quais todo o planeta tremerá.

A América Latina, assim, não pode ser lida apenas como vítima: ela é também protagonista de alternativas civilizatórias. Aqui pulsa a possibilidade de um outro horizonte — baseado em solidariedade, em democracia real, em tecnologias de baixo impacto, em espiritualidades que reconhecem a natureza não como recurso, mas como matriz de vida. Negar a importância dessas experiências seria repetir, uma vez mais, o erro histórico do Norte global, que enxerga a região apenas como província de exportação ou território de sacrifício.

Se o mundo quiser sobreviver ao século XXI, terá de aprender com a América Latina — tanto no reconhecimento da violência histórica que se abateu sobre ela, quanto na admiração pela força de quem resiste e reinventa a dignidade coletiva em meio às chamas. Pois a maior tragédia da mudança climática não será apenas a perda de espécies ou de megatons de carbono. Será perder, junto, a sabedoria de povos inteiros que sabem como cuidar do planeta melhor do que qualquer diplomata de cúpula climática.

O horizonte da transformação: caminhos radicais.

Falar em transformação diante de um cenário tão brutal pode parecer ingênuo, ou até tolo. Mas não há alternativa mais realista do que encarar, com radicalidade, a necessidade de reconstruir as bases do nosso modo de existir. A palavra “radical” não é aqui um adorno retórico: ela vem de radix, raiz — e só transformações profundas, enraizadas na justiça, podem conter a força destrutiva do colapso climático e civilizacional.

O horizonte da mudança não pode se limitar a metas de carbono gerenciadas por fóruns multilaterais que se arrastam há décadas sem coragem de romper com o extrativismo. Não haverá futuro viável se a transição energética for apenas mais um mercado para as mesmas corporações que hoje destroem ecossistemas. É preciso reimaginar a economia a partir da regeneração, da redistribuição de poder e riqueza, da restauração da terra e da reconciliação com os ciclos vitais do planeta. Isso implica deslocar o centro de gravidade do debate climático: do Norte global para o Sul global, dos gabinetes corporativos para os movimentos comunitários, das métricas financeiras para os direitos territoriais, do lucro para o cuidado.

Energia renovável, agroecologia, transportes públicos de massa, reabilitação de solos, reflorestamentos dirigidos, proteção das águas — tudo isso já existe tecnicamente. Mas nada disso será sustentável se não for acompanhado por uma transformação social, cultural e simbólica que desarme a lógica da mercantilização absoluta, que devolva a noção de bem comum como princípio civilizatório. Pois de nada adianta trocar carvão por painéis solares se continuarmos consumindo territórios, corpos, culturas e subjetividades numa velocidade que ultrapassa qualquer capacidade regenerativa.

Aqui, é fundamental apontar, de forma metodologicamente transparente, que as projeções preditivas mais sólidas (baseadas em cenários do IPCC, nos Shared Socioeconomic Pathways) demonstram: sem redução de desigualdades, sem sistemas de governança democrática, sem redistribuição de renda, não há caminho de contenção climática realista. Ou seja, não é apenas a energia que precisa mudar — é a arquitetura inteira da convivência humana. Esta conclusão, por mais dura que soe, é respaldada por dezenas de estudos revisados por pares que mostram a inviabilidade de estabilizar o aquecimento global num contexto de desigualdade estrutural crescente.

Transformar radicalmente o horizonte significa aceitar que “ajustes” não bastam. Que não se trata de salvar o planeta, mas de salvar a própria humanidade de sua autossabotagem, de seu delírio colonial, de sua cegueira ecocida. O horizonte possível exige reconhecer que soluções reais não virão de quem lucra com o desastre, mas de quem ousa recriar outras formas de viver, plantadas nas margens, nos territórios, nas redes populares, nos saberes ancestrais.

É nesse ponto que a transformação deixa de ser apenas técnica e passa a ser ontológica — transformando, junto, o nosso modo de habitar, de consumir, de produzir sentido. E sem essa transformação no nível mais profundo da experiência, qualquer vitória tecnológica será apenas um paliativo, que adia o inevitável.

O horizonte está, portanto, aberto: ou seguimos a fábula suicida de progresso infinito, com data marcada para o colapso, ou elegemos, juntos, outra história — na qual a Terra não seja um palco de pilhagem, mas um laço que nos devolve a possibilidade de futuro. O tempo para escolher não é confortável, mas é agora.

Ou seja…

Talvez a tragédia maior não seja o colapso em si, mas a recusa coletiva em olhar para ele de frente. Pois há uma crueldade silenciosa em perceber que a humanidade não sucumbe por ignorância, mas por soberba — por insistir em negar os limites do mundo que a sustenta. Quando as mudanças climáticas se somarem, de maneira definitiva, à crise civilizacional, não teremos mais a chance de alegar surpresa. Porque tudo já estava escrito: nos dados, nas previsões, nos gritos sufocados dos que sempre souberam que a ferida colonial, o racismo estrutural, o patriarcado e o capitalismo predatório jamais ficariam sem resposta da própria Terra.

A civilização que celebra o lucro acima de qualquer sentido de pertencimento, que converteu rios em esgoto e florestas em mercadoria, que ergueu muralhas para defender privilégios enquanto esmagava corpos negros, indígenas e pobres — essa civilização não terá futuro se não refizer radicalmente sua relação com a vida. E quando a catástrofe climática bater à porta, não chegará sozinha: trará, junto, as ruínas do projeto moderno, as rachaduras de democracias capturadas pelo dinheiro, a falência de solidariedades, a derrocada de qualquer ética comum.

Ainda assim, há um lampejo de possibilidade. Pois dentro do mesmo colapso lateja a chance de reinvenção, de reaprender a viver em comunidade, de reatar alianças perdidas entre seres humanos e a Terra. Mas este lampejo exige coragem: coragem para romper com modelos de poder que prometem “adaptação” apenas para os ricos, coragem para enfrentar os donos do carbono e das armas, coragem para defender até o fim a ideia de que toda vida importa — não apenas a vida que gera dividendos.

Se não houver essa coragem, restará o pior: um mundo sitiado, brutalizado, onde cada gesto de cuidado será criminalizado, e cada gota d’água, transformada em ativo financeiro. Não há saída técnica para um colapso civilizacional se não houver, antes, um movimento profundo de reconstrução moral e política, capaz de reinventar a própria noção de civilização.

O tempo, esse tempo que corre e não perdoa, nos chama a escolher. Porque se a mudança climática se soma ao desmonte do tecido civilizacional, não será apenas o planeta que perderemos — será a própria ideia de futuro, de dignidade, de humanidade partilhada.

Este ensaio não pretende ser um epitáfio, mas um convite. Um convite a sentir na pele o tremor desta hora histórica, a rejeitar as anestesias do negacionismo e do fatalismo, e a cultivar, em cada gesto, a possibilidade de um outro mundo. Pois mesmo às vésperas do colapso, resta sempre a centelha de insurgência que faz a história dar voltas — e renascer.

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.